Muito ao contrário dos EUA e de George W. Bush, que se mantém no poder a partir de eleições fraudulentas e sem transparência nenhuma, a Venezuela de Hugo Chávez deu uma demonstração cristalina de democracia verdadeira ao reconhecer uma derrota eleitoral por apenas 0,4% dos votos válidos, numa eleição superfiscalizada e acompanhada por mais de 100 observadores de 35 países de todos os continentes. No instante em que o Conselho Nacional Eleitoral pronunciou o resultado, no mesmo dia da votação, caiu em pedaços o maior cerco midiático mundial jamais erigido pela mídia hegemônica contra uma nação democrática. A poderosa matriz de opinião midiática, contra a informação e de desinformação, construída ao longo de oito anos consecutivos de mentiras e descalabros a respeito do tirano, do ditador, do líder castro-comunista e outras banalidades reacionárias que não pouparam nem o surrado comunismo-que-come-criancinhas, foi pulverizada num segundo. A Operação Tenaz, patrocinada e dirigida pela CIA com vastos recursos financeiros e levada a cabo pela Embaixada dos EUA durante a campanha que foi descoberta pela Inteligência venezuelana e divulgada dias antes do pleito, prevendo até a invasão da Venezuela para enfim derrubar o ditador e suas fraudes eleitorais , foi atingida em cheio pela única possibilidade não prevista em nenhum dos minuciosos cenários que foram calculados para a pós-divulgação dos resultados: a derrota de Chávez. As oposições, que se haviam assumido sem nenhum pejo à mais indigna e pública condição de cachorros do Império, estavam preparadíssimas para a fraude, até por numerosos e prolongados estágios de seus líderes em Miami, Israel e Europa Oriental, e prontas para iniciar uma guerra civil tão logo fosse divulgada a vitória do Sim, ficou sem saber o que fazer com a inesperada vitória do seu Não. Tiveram de retirar cartazes de fraude já colocados estrategicamente e tirar do ar vídeos e chamadas para derrubar o governo que veiculavam na internet e nas grandes redes mundiais de TV, bem antes de anunciados os resultados, e negociar às pressas com frustrados chavistas alguns foguetes para uma tímida e desapontada comemoração, num bairro
chic de Caracas, que durou só o tempo suficiente para o registro das câmeras nacionais e internacionais.
Ademais, o processo se fortalece enormemente, na medida em que se liberta de vez da perversa matriz de opinião fabricada, em nível mundial, contra seus princípios éticos e democráticos, e obriga seus poderosos inimigos a uma trégua que não desejavam, pelo menos até que achem como construir outra matriz de opinião. Livra-se, também, de mais uma leva de pesos mortos, contraproducentes ou nefastos; conquista dados precisos para uma estratégia a curto e médio prazos (o mapa de resultados das urnas); e, principalmente, recebe um saudável alerta, uma advertência mesmo, educativa, podemos dizer, por parte daquele que protagoniza soberanamente o processo na condição de sua própria essência, objeto e princípio, isto é, o povo.
Era uma tropa de cerca de quinze homens a cavalo e umas dez mulas de carga, numa expedição super bem equipada e guiada por um jagunço hábil e esperto, viajando por terras inóspitas de grande extensão, para que se estabelecessem os limites de um latifúndio por lugares completamente desabitados. Me impressionou a força e a importância daqueles cavalos e mulas, que nos possibilitavam vencer percursos dificílimos por entre as brenhas emaranhadas daquele deserto verde, espinhoso, rude e escarpado. Descíamos e subíamos vales, varávamos riachos e rios, cruzávamos planícies inacreditáveis, por onde uma fauna rica de variadas espécies fugia, assustada, abrindo caminho para passarmos. Lembro-me de que nos banqueteamos com um tatu enorme delicioso quitute, servido no próprio casco do bicho caçado a unha por nosso diligente guia, que acabou por puxá-lo pelo rabo, na marra, de dentro de um buraco em que o bicho se metera.
De súbito, quando descíamos um declive íngreme e incômodo, um pouco antes de uma curva fechada à direita, os cavalos e as mulas fizeram um alto repentino e inusitado, todos estacando e imobilizando-se, inquietos. Alguns de nós tentaram em vão usar as esporas para fazê-los andar, mas só conseguiam empiná-los, bravos, sem avançar um centímetro. Eis que, logo logo, passa a meu lado, correndo como um corisco, o nosso guia. No momento da parada súbita, ele andava lá por trás, fingindo ajeitar qualquer coisa nas mulas de carga e tomando umas pingas às escondidas. Trazia na mão direita o enorme facão que usava para abrir caminhos nas florestas e bosques, à frente da tropa. Ágil e rápido, ele colheu um galho seco na beira do caminho e foi para o lado de fora da curva, embrenhando-se no mato, por onde sumiu por um breve instante para depois emergir, do outro lado da curva, com o olhar quase a rés do chão, a mirar um alvo que não podíamos enxergar. Testemunhávamos, in loco, uma daquelas cenas magistrais de Euclides da Cunha. O jagunço saiu de dentro do mato sem mover uma folha, arrastando-se pelo chão de poeira, com o facão numa das mãos e o galho na outra, atravessando o caminho como se fosse uma lagartixa, numa trajetória circular em torno do alvo para nós invisível, até sumir por detrás da rocha que beirava a estrada, por dentro da curva. Passaram-se alguns minutos e ouvimos os zunidos e os estalares do facão numa sequência rapidíssima, combinada com os gritos ferozes do jagunço que urrava: Morre, marvada, sua fia dégua, safada, disgramada, mardita!. Não vimos nada, não fizemos nada, só ouvimos. Inclusive essa pérola de cultura que meus ouvidos ainda guardam: Morre, razão do pecado!. Logo depois surge ele, no meio da curva, tranqüilo, como se nada houvesse ocorrido, dando um chamado carinhoso a sua égua, cujo nome jamais eu poderia esquecer, tão adequado era ao ente nominado, servil, dócil e obediente:
Assembréia!… A égua veio lá de trás, em trote rápido, passando por toda a tropa até aconchegar o focinho nas mãos amigas de seu dono. Ele embainhou o facão no arreio, montou, e, de costas para nós, fez sinal de marchar. E foi bastante este sinal ligeiro para fazer mover, simultaneamente, num átimo, todos os animais da tropa empacada, do primeiro ao último, na direção do destino, a passo lento.
A história vem ao caso porque me veio à lembrança com a surpresa mundial pelo resultado do plebiscito na Venezuela. É que, meditei, a intuição popular, pela reação medida como resposta de massas, em conjunto, naquele pleito, talvez tenha muito a ver com o instinto animal na premonição do perigo, como aquilo que testemunhei. Muito para além de todas as ameaças do bombardeio midiático que sofreu o povo venezuelano algumas, reais ou plausíveis, como a guerra civil e a invasão do Império, outras idiotas e risíveis como a perda dos filhos para que o Estado se encarregue de educá-los, a divisão da casa com os mais pobres, e outras baboseiras, até a de uma famoso babalorixá que obteve grande destaque de mídia no dia da votação por prever que Chávez morreria ou perderia o poder se a Reforma fosse aprovada , falou nas urnas uma outra voz, uma outra sabedoria, semelhante àquela que foi dotada aos animais pela natureza, tornando-os capazes de pressentir um perigo antes mesmo que ele se configure como real. No caso deste plebiscito, talvez tenha falado mais alto o aspecto não consciente da ideologia, de que tratou Ludovico Silva.
Cabe agora à Revolução Bolivariana da Venezuela, por seus líderes, intelectuais e principais protagonistas, dar cabo dessa serpente que a sabedoria popular intuiu no caminho da Reforma, e que, tudo leva a crer, tem muito mais possibilidade de estar dentro do próprio movimento revolucionário do que nas ameaças das forças reacionárias internas ou externas quanto ao país e ao povo, por mais poderosas sejam, pois estas o povo venezuelano já demonstrou não temer e ser capaz de enfrentar.