O caso Varig e o conceito de função social da empresa
Os trabalhadores do Grupo Varig reputam, em todos os sentidos, louvável a iniciativa do jornalista Sidney Rezende ao cobrir com maior profundidade a “recuperação” da Varig e o resultado desta sobre seus milhares de empregados e aposentados.
Com efeito, a superficialidade das mais diversas notícias no Brasil, de um modo geral, em nada contribui para uma consciente tomada de posição da sociedade frente aos benefícios ou prejuízos coletivos decorrentes de qualquer situação.
Ao publicar as convicções do magistrado responsável pela condução do caso Varig (Luiz Roberto Ayoub) perante a justiça empresarial, em relação à lei que deveria nortear o processo, o interesse público é ainda mais bem servido, pois descobre-se a fonte inspiradora de uma situação que há de ficar marcada na história como emblemática do tempo em que ora vive a Nação brasileira.
Afinal, como a manutenção do nome de uma empresa e menos de 20% dos postos de trabalho originais (restritos a novos empregados e com 50% de redução salarial), pode ser considerado útil à sociedade, refletindo algum sucesso? Só se fosse em relação ao incentivo da atividade empresarial de terceiros!
Para os trabalhadores da Varig vem sendo muito difícil compreender como, supostamente de acordo com a lei, podem ficar sem emprego – os milhares ilegalmente afastados; sem salários dignos – os poucos remanescentes; sem receber seus atrasados – todos; sem as pensões – os mais de 7.500 aposentados; e sem o fundo de pensão – os 10.000 funcionários ativos que para o mesmo contribuíram por até 24 anos.
Mas com a entrevista em tela torna-se possível entender ao menos parte da razão pela qual o processo tomou tal rumo. Possivelmente a mais importante causa de tudo isto esteja na convicção declarada pelo Dr. Ayoub do seu entendimento quanto ao objetivo da lei de recuperação e falência ser, conforme reportado, “manter, sempre que possível, a atividade empresarial da instituição à beira da falência, pois o extermínio da mesma só deve acontecer quando seu funcionamento se mostrar nocivo à sociedade”.
Com a devida vênia, divergimos desta visão estreita. Mas, agora, passamos a melhor entender como um processo presidido com a seriedade característica de tão ilustre magistrado possa estar causando sofrimento a tantos milhares de famílias e mesmo a perda prematura de tantos trabalhadores e aposentados.
É que, data venia, a lei 11.101 (de recuperação judicial) tem escopo muito maior do que a simples manutenção da atividade empresarial.
Ela objetiva, literalmente (art. 47), preservar a função social da empresa devedora (em situação de crise), permitindo não só a sua manutenção, como a manutenção do emprego dos trabalhadores e a manutenção dos interesses dos credores, sendo fundamental entender seu objeto para corretamente aplicá-la.
“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”
Realmente, se fosse possível esquecer os fins sociais da empresa, pouco restaria aos trabalhadores da Varig reclamar. Dizemos pouco, porque não vemos preço para a dignidade humana, para a possibilidade de ganhar honestamente o sustento de nossas famílias, para enfrentar com auto-suficiência o final de nossas vidas; pois ainda teríamos a reclamar os cerca de R$ 5 bilhões a que montam nossos créditos, quase a metade do total devido pela Varig.
Além do acima examinado, que por si só justificaria a reportagem dada sua amplamente reveladora qualidade, outros pontos merecem destaque. Como a consideração de que “caso a empresa fosse posta à venda com todos os seus passivos, o comprador, caso existisse algum, no mínimo ofertaria um preço abaixo do valor de mercado, considerando o risco do negócio” .
Ora, no caso da Varig o “comprador” nada pagou. Absolutamente nada! Levou a Varig em troca de um suposto empréstimo equivalente a US$ 20 milhões, a ser empregado na própria empresa que comprou! E isto enquanto era devedor de quantia maior do que esta à própria Varig! Verdadeiro negócio da China, ou não?
Neste ponto ficou uma lacuna a esclarecer. É quanto à adequação do valor auferido com a venda acima descrita, à declaração de que a ausência de sucessão trabalhista visa a “…atrair interessados que, com o pagamento justo para a aquisição da unidade produtiva, possam recuperar a empresa e, com isso, garantir a manutenção dos consectários que dela decorre” .
E ainda que houvessem sido pagos aos credores US$ 20 milhões, representaria este valor pagamento justo pela Varig? E se representasse, na forma em que foi feito o negócio pelo juízo empresarial, a lei 11.101 de fato prevê a não sucessão trabalhista?
Conforme a reportagem, o Dr. Ayoub discordou de que fosse “a aplicação da lei de recuperação um ‘calote legitimado pela Justiça’, como dizem alguns funcionários”, mas é interessante pesquisar os anais do Senado Federal sobre esta lei determinar ou não a sucessão trabalhista nas alienações promovidas sob a égide do parágrafo único do art. 60, verificando que a questão foi objeto de pelo menos duas discussões específicas e esclarecedoras.
A ata da 15a Reunião Ordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em 02/06/2004, registra ter o Senador Rodolpho Tourinho proposto uma emenda ao texto legal (emenda nº 6), que foi recusada por unanimidade. Posteriormente, o exato teor da mencionada emenda foi reiterado pelo Senador Arthur Virgílio perante o Plenário do Senado Federal, desta feita como emenda nº 12, também recusada.
Pela ata, o intuito daquelas emendas seriam “…modificar o parágrafo único do art. 60 do substitutivo, para estabelecer a não-responsabilização do arrematante pelo passivo trabalhista nas vendas judiciais de empresas no âmbito da recuperação judicial, ou seja, propõe o fim da sucessão trabalhista também na recuperação judicial “, com suas defesas argumentando ser “… de fundamental importância assegurar que a aquisição de ?liais ou de unidades produtivas de empresas em recuperação, quando feita em hasta pública, não implicará a assunção, pelo comprador, das obrigações do devedor em matéria trabalhista. Com isso, estar-se-á afastando esse efetivo impedimento à recuperação judicial, em favorecimento da manutenção da empresa e, conseqüentemente, da arrecadação de tributos e dos postos de trabalho por ela gerados” .
A deliberação dos senadores em relação às emendas e suas defesas foi a mesma, rejeitando-as: “… porque a exclusão da sucessão trabalhista na recuperação judicial pode dar margem a fraudes aos direitos dos trabalhadores e a comportamentos oportunistas por parte de empresários ”.
Premonitórias ou não as decisões do legislativo acima reproduzidas, aos trabalhadores do Grupo Varig pouco tem amparado a visão de que “o Poder Judiciário e o Ministério Público fiscalizam os abusos que eventualmente decorrem da pretensão de utilização da legislação empresarial para burlar o cumprimento de obrigações” .
Tem mesmo sido difícil discutir flagrantes descumprimentos de preceitos estabelecidos na própria lei 11.101 como, por exemplo, a votação por classe que aos credores trabalhistas da Varig foi negada e o desrespeito à proibição de prazo superior a um ano para pagamento dos créditos trabalhistas, sem ter o MP ou o Juízo garantido que o encaminhamento vigente, apesar da insistência dos trabalhadores, observasse e cumprisse, ao menos, o disposto no art. 54 da lei.
No mais, até os que defendem inexistir sucessão trabalhista nas vendas efetuadas sob a forma do art. 60 da lei 11.101, definem tal forma de maneira totalmente distinta da que foi empregada para a entrega da Varig no caso em questão.
Estes, como é o caso de Fábio Ulhoa Coelho e Carlos Alberto Fonseca de Andrade e Sergio Campinho, por exemplo, entendem que, ao permitir a alienação de filial ou unidade produtiva isolada, a lei pretendeu permitir alienar ativos secundários, que não inviabilizassem a atividade-fim da empresa em recuperação. Por isso a menção expressa a “filiais ou unidades produtivas isoladas”, estas definidas em doutrina como “estabelecimento secundário, cujo gerente tem certa autonomia, mas está vinculado ao estabelecimento principal, pois dele recebe instruções sobre os negócios de maior importância ou gravidade”.
No caso Varig, não restam dúvidas, foi alienada a empresa em sua inteireza e não apenas de uma unidade produtiva isolada ou filial. Assim, se a lei de recuperação judicial excluísse a sucessão exclusivamente nos casos de alienação de filiais ou unidades produtivas isoladas e se, no caso Varig, o que foi vendido foi toda a empresa até então mantida, é evidente que há sucessão nas obrigações trabalhistas.
Ou, então, quem vai pagar os créditos trabalhistas? A massa restante das devedoras, de passivo superior a R$ 10 bilhões, reduzidas a uma empresa sem um único avião, com uma única rota (de quinta categoria) e mera administradora de alguns imóveis?
Afinal, em que pese o entendimento divergente, a lei 11.101, foi elaborada, promulgada e publicada com a finalidade precípua de: (a) permitir a reorganização, saneamento e manutenção de empresas econômica e financeiramente viáveis – dentro da sua função social, (b) preservar os empregos dos trabalhadores – e suas condições de trabalho e (c) garantir os direitos dos credores – inclusive de propor soluções alternativas; conforme evidenciado no seu texto.
Qualquer outra situação pode ser um sucesso para quem aplica a lei e para quem dela se beneficia, mas nunca para os trabalhadores e demais credores espoliados.
* O comandante Élnio Borges é presidente da Associação dos Pilotos da Varig (Apvar)