De todas as experiências progressistas na América Latina, decorrentes das vitórias eleitorais de forças mais à esquerda, a que atualmente corre maior risco de retrocesso é a da Bolívia. Segundo inúmeros analistas, a nação vizinha está à beira de uma guerra civil. A oligarquia racista, que até hoje não engoliu a histórica eleição do líder camponês e indígena Evo Morales, está apostando as suas fichas na divisão do país, num movimento separatista de caráter fascistóide. O “referendo da autonomia” no rico departamento de Santa Cruz, em 4 de maio, pode ser o estopim do confronto.
Numa iniciativa ilegal, contrária à Constituição e à unidade territorial, Rubén Costa, governador do estado e líder dos separatistas, alardeia que o referendo será o primeiro passo para a cisão do país. Outros três departamentos (Pando, Tarija e Beni) pretendem trilhar o mesmo rumo. Desde a posse de Evo Morales, em janeiro de 2006, a burguesia boliviana orquestra este golpe, que visa separar a parte oriental, “Media Luna”, mais industrializada e rica em recursos naturais, da parte ocidental – mais pobre e com predomínio da população indígena. Para impor a divisão, ela conta com o apoio escancarado dos EUA e recruta mercenários para um previsível confronto armado.
O embaixador separatista
A ação intervencionista do presidente-terrorista George Bush é aberta. Numa nítida provocação, ele nomeou como embaixador na Bolívia o temível Philip Goldberg. Este agente do imperialismo ficou famoso pelas ações de estímulo ao separatismo nos Bálcãs, na chamada “Missão Kosovo”. Como denuncia Stella Calloni, no texto “contra-insurgência y golpismo”, “Goldberg é conhecido como especialista em agudizar conflitos étnicos e raciais e por sua intervenção e experiência nas lutas étnicas desde a Bósnia até a separação da ex-Iugoslávia”. Seu passado “diplomático” inclui ainda o golpe do Haiti que derrubou Jean Aristides e a militarização do Plano Colômbia.
Para ela, “não há dúvidas de que as mãos de Goldberg estão por trás do processo separatista em Santa Cruz de la Sierra”, iniciado logo após a posse de Morales e que já resultou em sabotagens e mortes. “Quando chegou à Bolívia, os empresários croatas de Santa Cruz (seus velhos amigos) conformaram o movimento ‘Nação Camba’. Um dos principais líderes do movimento, com laços empresariais no Chile, Branco Marinkovic, é o maior promotor das medidas de desestabilização, com influência no restante da Media Luna”, e tem sólidos vínculos com o embaixador ianque.
Manobras militares na região
No ano passado, na 17ª Cumbre Iberoamericana, no Chile, o presidente Evo Morales exibiu aos chefes de Estado várias fotos do embaixador Goldberg sorrindo ao lado do mafioso e paramilitar colombiano Jairo Vanegas. Até funcionários da embaixada dos EUA em La Paz revelaram que George Bush encarou a vitória de Morales como “ameaça a segurança da região” devido ao seu “populismo radical” e aos vínculos com Hugo Chávez e Fidel Castro. O ex-secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld chegou a declarar que “a Bolívia agora faz parte do eixo do mal”.
Noutra ação provocativa, tropas ianques realizam exercícios militares no vizinho Paraguai desde fins de 2005, quando já era certa a vitória do líder indígena. “Forças especiais dos EUA atuam na fronteira comum em manobras dissimuladas de ação cívica, uma velha tática contra-insurgente”, alerta a autora. Os Esquadrões Operativos Adiantados (EOA) contam com forte estrutura no país vizinho, inclusive uma pista aérea de 3,8 mil metros na base de Mariscal Estigarribia, construída na época do ditador Alfredo Stroessner. A chegada de Fernando Lugo à presidência do Paraguai ameaça anular estes acordos militares, o que poderia precipitar uma aventura militar na Bolívia.
Grupos fascistas e mercenários
Desesperada com as mudanças graduais promovidas pelo governo Morales, mas animada com o apoio aberto dos EUA, a oligarquia racista se arma para o confronto. Manfred Reis, ex-militar na ditadura de Hugo Banzer e influente autonomista de Cochabamba, organizou grupos de jovens fascistas responsáveis por violentos confrontos que resultaram em mortos e feridos. Atualmente, ele está refugiado em Santa Cruz. Em novembro de 2006, a agência de notícias Erbol informou que um grupo de empresários viajou a Espanha para contratar mercenários. Donos de empresas de “segurança” confirmaram o rentável negócio. Um deles disse que agenciou 650 “combatentes, antigos membros de unidades de elite, que já estão operando nas zonas limítrofes da Bolívia”.
Os golpistas também contam com a milionária ajuda da Usaid e da NED, órgãos dos EUA que financiam organizações não-governamentais de oposição a Morales. O serviço de inteligência do governo provou recentemente a doação de milhões de dólares para líderes separatistas, grêmios estudantis e jornalistas na campanha contra a Constituinte. O financiamento garantiu os “paros cívicos” e os bloqueios violentos de estradas. Em 2007, o consulado da Venezuela e a residência de um médico cubano foram alvos de atentados e uma funcionária da embaixada dos EUA foi detida com armas e munição. Neste processo, “os meios de comunicação são os protagonistas da contra-insurgência, incentivando o confronto interno e a intervenção externa”, afirma Calloni.
Internacionalismo ativo e pressão
A manobra separatista da oligarquia boliviana, que deve adquirir nova dinâmica com o referendo de maio em Santa Cruz, tem recebido críticas de todos os lados. Até a Organização dos Estados Americanos (OEA), famosa por seu passado servil aos EUA, condenou o golpismo. Numa sessão extraordinária em Washington, em 26 de abril, a OEA apoiou a institucionalidade democrática e conclamou ao diálogo os governantes da Media Luna. Intelectuais e lideranças políticas, sociais e religiosas – entre elas, Pérez Esquivel, Noam Chomsky, Eduardo Galeano e os brasileiros Frei Betto, Oscar Niemeyer e Fernando Morais – também divulgaram um manifesto de solidariedade:
“O processo de mudança na Bolívia corre o risco de ser brutalmente interrompido. A ascensão ao poder de um presidente indígena e seus programas sociais e de recuperação dos recursos naturais enfrentam desde o primeiro momento as conspirações oligárquicas e a ingerência imperial. Nos dias mais recentes, a escalada conspirativa alcançou seus graus máximos. As ações subversivas e anticonstitucionais com que os grupos oligárquicos pretendem dividir a nação boliviana refletem a mentalidade fascista e elitista destes setores… Diante desta situação, queremos expressar nosso respaldo ao presidente Evo Morales. Ao mesmo tempo, rechaçamos o estatuto autonômico de Santa Cruz por seu caráter inconstitucional e por atentar contra a unidade de uma nação da nossa América”.
A grave situação boliviana, que coloca em perigo a própria onda progressista na América Latina, exige a solidariedade ativa de todos os setores democráticos e populares do continente e do mundo. É urgente denunciar a trama separatista e golpista da oligarquia, apoiada pelos EUA, nas bases dos trabalhadores, no parlamento e na mídia progressista. É necessário pressionar a OEA e o governo Lula para que adotem posições mais ativas diante deste risco de retrocesso na região.
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*Altamiro Borges, Miro é jornalista, Secretário de Comunicação do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição)