A função de denunciar crimes públicos não é mera faculdade, mas um encargo
Atualmente é comum se ver pessoas sacando seus smartphones para realizar os mais diversos tipos de filmagens. De espetáculos ao pôr do sol, a realização de filmagens particulares se transformou em um comportamento comum do nosso tempo.
Tal forma de proceder torna-se mais imperativa e quase instintiva quando nos deparamos com alguma violação a direito, principalmente devido à sua eficácia probatória, particularmente quando tais violações são perpetradas por agentes públicos que, via de regra, possuem presunção de legitimidade e veracidade em seus relatos. Contudo, sempre que há publicidade de alguma filmagem de violação a direito perpetrada por agente público, ressurge o debate. A pergunta é sempre a mesma: é possível e legal filmar tal tipo de ação?
Inicialmente é importante ressaltar que a ilegalidade do ato isolado de um policial não pode ser generalizada a ponto de macular a instituição da Polícia Militar, nem os tantos outros policiais que prestam grande serviço à comunidade. Porém, é importante que a sociedade fiscalize e a Policia Militar retire das ruas os indivíduos que, fardados, cometem atos inaceitáveis àqueles que são encarregados pelo Estado a manterem a lei e a ordem. Lembro que o jurista baiano Rui Barbosa sempre destacou que a função de denunciar crimes públicos não seria mera faculdade mas um encargo.
A abordagem policial é concretizada por um ato administrativo imperativo, autoexecutório e presumidamente legítimo. Traduz a materialização do poder de policia estatal e há inegável grau de constrangimento que deve ser suportado pelo cidadão em nome da convivência pacífica da sociedade. O poder de policia deve ser utilizado de forma proporcional e se houver necessidade de uso da força esta deve ser progressiva, não se admitindo que ela possa ser utilizada como escudo para arbitrariedades. Daí clara a necessidade de fiscalização dos atos dos prepostos públicos com o fim de adequar suas condutas às regras constitucionais.
Frise-se que a segurança é direito fundamental de todos os cidadãos conforme artigo 5º da Constituição Federal e que a segurança pública consubstancia a um só tempo dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, artigo 144 da Constituição Federal. Nesse sentido, a abordagem policial deve seguir o propósito definido em lei (prevenção ou investigação), com uso da força estritamente necessária (artigo 284 do Código de Processo Penal, artigo 2º da Lei 13.060/14 e artigo 3º do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei – Resolução 34/169 da ONU).
A função policial é pública e, dessa forma, passível de fiscalização por parte da sociedade, o que possibilita que qualquer pessoa assista, fotografe ou filme patrulhas, abordagens e ocorrências, sendo também permitido que o policial faça o mesmo com qualquer cidadão.
Conquanto para que não ocorram problemas, deve-se tomar algumas precauções, como não falar enquanto filma, se possível não mostrar os rostos dos policiais (existem outros métodos de identificação como a numeração do colete ou da viatura), não editar o vídeo para evitar que o conteúdo seja retirado de contexto (ou sofrer acusações disso). Além desses cuidados, é de bom insistir que se tenha bastante discrição, afinal ninguém gosta de ser filmado, principalmente se estiver praticando um ato contrário à legislação.
Outros pontos que necessitam de maior discussão e compreensão são a abordagem a quem está filmando para levá-lo à delegacia como testemunha e o ato de apreender o smartphone como meio de prova. No primeiro ponto há de se ressaltar que qualquer pessoa que presencie o ocorrido pode ser convocada como testemunha, mas isso não deve ser necessariamente ligado ao fato dela ter filmado a ação, podendo-se escolher outras pessoas. Cabe, porém, a quem filmou o fornecimento de dados pessoais e formas de localização de sua pessoa, como número de telefone, para caso seja chamada pela autoridade policial ou justiça para se manifestar. Porém, se ao acaso quem filmou precisar ser chamado, a decisão cabe à autoridade policial, não ao policial militar que se encontra ali na hora, no local do ocorrido.
O conteúdo gravado pode ser retirado do aparelho, na delegacia, sem a necessidade da apreensão do dispositivo. No caso específico de conteúdo gravado que denuncie violações de direito, a condução por parte da autoridade policial de quem realizou as gravações só deve ser realizada quando ocorre o não comparecimento, após intimação, não podendo ser utilizada como forma de retaliação.
Deve ser ressaltado que o policial é um funcionário público. Logo, está sujeito à fiscalização da população e, portanto, filmar sua ação é exercício do direito fundamental da liberdade de expressão e de fiscalização da atuação do poder público. Caso o policial esteja agindo conforme a lei, será o maior interessado em ter uma prova de sua boa atuação exposta. Deve o cidadão, ao tomar a decisão de gravar vídeo de alguma conduta, contudo, tomar os cuidados citados, garantindo sua segurança.
*Eduardo Rodrigues de Souza é advogado e professor, vice-presidente nacional da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini, membro da Comissão Nacional de Direito Agrário da OAB e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Bahia