De como estão sepultando a “Era Vargas”
“A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos
grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”
Da Carta-testamento de Getúlio Vargas, levado ao suicídio em 24/8/54.
Pedro Porfírio (Rio) – Quando o sol nascer, nesse domingo, teremos um motivo especial para reflexão: a história estará registrando o 54º aniversário do suicídio de Getúlio Dorneles Vargas, ainda o maior estadista do Brasil, cuja obra jamais poderá ser esquecida, como referência de patriotismo e de direitos sociais. Faço questão de falar do presidente Vargas da mesma forma que não posso deixar de lembrar seus legítimos herdeiros, João Goulart e Leonel Brizola, grandes vultos de uma história que está para ser contada com a lisura devida. Se me emociona fazer esta coluna hoje, o faço num esforço sobre-humano para chegar aos meus contemporâneos com as mais veementes lembranças.
Isto por que estou vendo com meus próprios olhos a tentativa solerte de sepultarem sua obra, cujas marcas indeléveis são as ameaçadas conquistas trabalhistas e a afirmação da soberania nacional, seriamente abalada com o desmonte na prática do monopólio estatal do petróleo. No caso dos direitos trabalhistas, a mudança mais grave alcançou os aposentados e pensionistas numa rapina que ainda vai continuar. Há articulações em estado avançado para atingir outra vez os segurados do INSS, com a criação de mais empecilhos à aposentadoria, e as pensionistas, que praticamente perderiam esse direito.
Mas há em curso também algumas negociações destinadas a detonar as conquistas dos trabalhadores na ativa, incluindo restrições às férias, décimo terceiro salário e outros direitos sociais. Tanto que não tem prosperado a discussão sobre a ratificação no Congresso da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, que proíbe a demissão imotivada, apesar dos esforços do ministro Carlos Lupi. O repertório de conquistas nos períodos de Getúlio Vargas e João Goulart é vasto e representa uma mudança radical na compreensão dos direitos dos trabalhadores.
Abandonados e mal pagos – Ninguém até hoje chegou nem perto dessa mudança. E quem faz discurso em nome dos assalariados tem tido uma postura surpreendentemente hipócrita. Ao contrário da fala doce, pratica medidas que têm minado os direitos conquistados. O mais grave nesse campo é o abandono dos empregados no caso da insolvência das empresas. Nem na antiga lei, nem na nova, que se apresenta como destinada a garantir a recuperação, os profissionais das empresas em crise tiveram garantias efetivas dos seus créditos. Dois casos que servem de referências são a situação do pessoal da Bloch, que faliu em 2000, sob vigência da antiga lei, e mais recentemente o caso da Varig, primeira a recorrer aos subterfúgios da “recuperação com a chancela da Justiça”.
Até hoje os trabalhadores da Bloch esperam o reconhecimento dos seus créditos, que seriam prioritários, na forma na lei do tempo de Getúlio. O cumprimento dessa obrigação tem sido solapado por uma estranha morosidade da Justiça, em contraste com a disponibilidade de bens que dariam para que todos os créditos trabalhistas fossem honrados. Aí, apesar da postura correta da Vara Empresarial, em primeira instância, atos em nível de Câmara Cível provocaram sentimentos de frustração entre os trabalhadores: o rateio de um crédito, decidido com clareza meridiana pela juíza da Vara Empresarial, foi desautorizado na 3ª Câmara Cível, que acolheu uma insólita petição da Procuradoria da Fazenda Pública, a quem caberia esperar a observação do direito de credor preferencial concedido pela antiga lei aos empregados.
No caso da Varig, porém, a assimilação da nova lei pelo titular da 1ª Vara Empresarial acarretou uma interpretação tão perversa que, pela primeira vez, excluiu a Justiça Trabalhista de qualquer pronunciamento sobre direitos trabalhistas. Este fato teve o peso de um aviso: os direitos conquistados pela CLT já não contam. A abrupta conseqüência dessa percepção legal “nova” foi a dispensa dos trabalhadores do grupo Varig sem a quitação de uma única dívida trabalhista. Com a chancela da Vara Empresarial, sete mil trabalhadores foram para o olho da rua sem um níquel, mesmo de salários atrasados.
Há uma semelhança trágica nos dois casos. Uma massa de profissionais especializados, preparados, competentes ficou ao deus-dará, com todas as dificuldades imagináveis para o reingresso no mercado de trabalho. Na lambança da Varig, a violência se irradiou para os seus aposentados, cujo fundo de pensão complementar foi de água abaixo, por conta da dívida bilionária da patrocinadora, que vinha se acumulando sob os olhares cúmplices da Secretaria de Previdência Complementar.
Renúncia “voluntária” – A cristalização desses casos abre caminho para um ambiente de chantagem social. Assustados, os trabalhadores de outras empresas e de outras atividades acabam abrindo mão dos seus direitos, numa de que só terão condição de permanecer em seus postos num regime em que de fato a legislação trabalhista tenha desaparecido. Há, assim, uma sistematização sibilina da proposta proclamada pelo professor FHC para enterrar a “Era Vargas”. Como é da doutrina vigente, o próprio “mercado” vai gerando um tipo de relação destituída das garantias que sobrevivem apenas no papel.
Era garoto quando o país foi abalado pela notícia da morte de Getúlio. Mas lembro perfeitamente do choque que causou, como prenúncio de que estava em marcha um processo articulado de fora para dentro com o objetivo de destituir o povo de suas conquistas sociais. Num primeiro momento, o sacrifício do presidente serviu como um entrave a essa conspiração. A população foi para as ruas e tomou consciência da gravidade de toda aquela campanha contra ele.
Em 1955, refeito, o povo elegeu uma chapa presidencial com Juscelino e Jango. As mesmas forças que fizeram de tudo para rasgar aqueles direitos se mantiveram em franca atividade. Veio a crise de 1961, quando tentaram impedir a posse de João Goulart. E o golpe de 1964, que o derrubou do poder, abrindo caminho à ditadura. Ali começaram a detonar as conquistas da “Era Vargas”. Mas, curiosamente, é neste momento em que os trabalhadores começam a sentir a falta de Getúlio, Jango e Brizola. Curiosamente, é por isso que hoje Getúlio não me saiu da cabeça.