Ora, que segurança jurídica pode haver na violação do direito constitucional de centenas de povos?
A luta de séculos dos povos indígenas em defesa de suas terras e de seu modo de vida encontra-se em um novo capítulo decisivo. Mais de 300 povos estão ameaçados pela ofensiva ruralista, amparada pelo governo Bolsonaro, que busca impedir a demarcação de novas terras indígenas com base na tese de que apenas os territórios indígenas, ocupados efetivamente até a promulgação da Constituição de 1988, seriam reconhecidos.
A tese do marco temporal teve origem em um julgamento do TRF-4, que aceitou este entendimento ao conceder a reintegração de posse sobre uma reserva indígena em Santa Catarina. O STF, agora, julga um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai), contra a decisão do tribunal. O resultado desta decisão terá repercussão geral.
O fim pretendido por tal tese, defendido por quem o defende, não tem fundamentação jurídica e obedece apenas ao costume histórico de violência e usurpação contra os povos indígenas que remanescem no Brasil. Se antes prevalecia o preconceito explícito e declarado contra os povos originários, tidos como preguiçosos, atrasados, incivilizados – o que servia como legitimação a toda sorte de opressão -, hoje é apresentado cinicamente a justificativa fajuta de que se busca garantir segurança jurídica para o País.
Ora, que segurança jurídica pode haver na violação do direito constitucional de centenas de povos? Direito este, aliás, que vem sendo reafirmado muito antes de 1988 em diversas constituições e outras leis nacionais. Em 1680, quando ainda éramos colônia portuguesa, foi concedido o Alvará Régio de 1º de abril, que concedeu aos povos nativos o direito de permanecerem em suas terras “sem serem molestados e nem mudados de lugar contra a sua vontade”.
Posterior a isso tivemos várias outras normas que reafirmaram este direito, inclusive as constituições promulgadas durante o Governo Vargas, em 1934 e 1937, e todas as outras subsequentes, nominalmente a de 1946, a de 67/69 e, por fim, a de Constituição Cidadã de 1988, que foi elaborada com grande participação de movimentos sociais indígenas.
A existência destas normas jurídicas protetivas aos direitos indígenas, contudo, nem sempre – ou quase nunca – teve efetividade. A história é recheada de episódios onde povos inteiros foram exterminados ou expulsos de onde viviam. São estes últimos os maiores prejudicados pelo estabelecimento da tese do marco temporal, visto que o processo de êxodo ao qual foram submetidos dificulta a comprovação de seu direito sobre o território.
Ademais, o direito originário se sobrepõe a qualquer direito de propriedade, e é explícito no art. 231, caput, da Constituição Federal de 88 que diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Neste mesmo artigo é afirmado tratar as terras como “inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis”.
O julgamento no Supremo, contudo, não é o único espaço de discussão sobre o tema. Tramita na Câmara Federal o PL 490, que prevê a adoção do marco temporal na demarcação de terras indígenas. Este também é flagrantemente inconstitucional e deve ser rejeitado pelos deputados.
Enfim, não restam dúvidas da inexistência de qualquer fundamento para a tese do marco temporal, senão o interesse escuso de espoliar as terras de mais de 300 povos indígenas brasileiros. E nós trabalhistas, historicamente ao lado dos povos originários em sua luta, sob a liderança de gente como o grande deputado federal Juruna e do antropólogo Darcy Ribeiro, devemos cerrar fileiras no debate público contra essa aberração que está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF).
*Auro Fernandes e Rafael Cardoso são diretores de Direitos Humanos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e militantes da Juventude Socialista do PDT e do movimento Reinventar.