A discussão da Reforma da Previdência evidenciou ainda mais as divisões em nossa sociedade. Muito menos pela consciência coletiva de que esta é uma reforma necessária, a PEC apresentada pelo governo Bolsonaro acabou por focar cerca de 80% das ações em quem receberia menos de dois salários mínimos de aposentadoria, deixando de fora interesses corporativistas e os detentores das grandes fortunas nacionais, que ainda encontram-se entre os que, proporcionalmente, menos pagam impostos no Brasil.
Ocorre que um outro ponto na votação acabou chamando mais atenção da mídia, que foi a votação de parlamentares contra a orientação de seus partidos, orientação essa tomada anteriormente, com todo o corpo diretivo dessas agremiações políticas. Daí começou-se a discutir quem são e quais os poderes da direção de determinados movimentos – como o Acredito, o Agora!, o Renova, a RAPS, entre outros – sobre seus membros. Afinal, quais seriam esses poderes que, supostamente, estariam superando as determinações partidárias que chegam a termo depois de discussão entre seus membros? O questionamento é pertinente e urgente, afinal, esses movimentos são financiados ou por grandes corporações ou individualmente por pessoas extremamente ricas.
Para entender esses movimentos, inicialmente se faz necessário perceber que, em política, pouca coisa se cria, muito se reaproveita de experiências passadas. Afinal, não é novidade que oligarquias endinheiradas tentem capturar a democracia com o aliciamento de lideranças de camadas menos privilegiadas da sociedade, prometendo a defesa de interesses desses setores sociais, mas, na verdade, buscam apenas a manutenção dos privilégios e relativizam a impressão do bom funcionamento das instituições democráticas.
Cabe-nos apreciar que Aristóteles, que viveu e construiu sua obra três séculos antes de Cristo, ao apresentar a distinção das formas de governo, o faz, encontrando como critério, a quantidade de pessoas em que esse poder repousa e de que forma ele é exercido. A interpretação aristotélica é de que os detentores do poder econômico abrem mão do poder político (ao menos em frente aos holofotes) em uma combinação que pode ser reconhecida como uma oligarquia democrática ou democracia oligárquica.
Aliás, faz-se importante a discussão do que realmente representa a democracia, tendo em vista que, no mundo contemporâneo, poucos são os Estados que não se consideram repúblicas democráticas, mesmo que seja muito difícil encontrar alguma semelhança entre eles. Em uma sociedade capitalista, o controle das representações políticas, seja por lobby ou por financiamento, turva o real sentido de representação coletiva. O questionamento que submerge é sempre: a quem serve tais mandatos, aos seus eleitores ou a seus financiadores?
Em sua icônica obra “Ódio à Democracia”, Jaques Rancière afirma que as sociedades, tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria. Portanto, o “poder do povo” é necessariamente anormal para a constituição das sociedades, que são não igualitárias. Da mesma forma, o “poder do povo” também é heterotópico aos governos oligárquicos. O poder do povo é a força que desvia o governo dele mesmo, separando o exercício do governo da representação da sociedade.
As possíveis consequências da concentração de poder político, mesmo de forma indireta, nas mãos de quem detém o poder econômico podem ser vislumbradas de forma mais simples na leitura da obra A Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell, que ironicamente foi construída como uma crítica à ditadura Stalinista. Em interpretação de Robert Kurz, o texto conclui, de forma implícita, que não é a troca sociológica do poder e de seus detentores que constitui a emancipação, e sim a superação da forma social, isso é, do sistema moderno produtor de mercadorias, comum às classes sociais.
A Revolução dos Bichos se passa numa granja liderada, inicialmente, pelo senhor Jones. Contudo, insatisfeitos com a dominação e exploração, os animais decidem fazer uma revolução tendo os porcos como líderes. Ocorre que, com o tempo, os porcos voltam a manter relações comerciais com os humanos, contrariando as regras da época da revolução. Os porcos também passam a subjugar os demais animais, outrora chamados de iguais. Aliás, daí vem a frase de que todos são iguais, uns mais iguais que os outros.
Pode parecer contraditória a declaração de que a democracia, enquanto possibilidade de participação das massas pode ter, ao mesmo tempo, um sentido de submissão dessas massas. Porém, caso a análise venha a ter como viés a qualidade da participação do cidadão que participa, ela, a democracia, pode passar a transparecer sua robustez.
Como se vê, não há nada de novo neste processo de aparecimento de grupos financiados pelo grande capital, que se aproveitam do ressurgimento da cultura de participação de cidadãs e cidadãos. Assim, o “povo” se vê na defesa de seus direitos, vê-se atuante na vida política e nos resultados práticos de suas lutas, porém há um pedágio forçado: a participação é voltada para temas que, ao final, prejudicam esse próprio seguimento mais humilde da sociedade, como vem acontecendo no Brasil com questões como a reforma trabalhista, a reforma da previdência, ações de proteção às grandes fortunas, e esforço por uma ênfase discursiva em reformas e arrumações que não atinjam diretamente os interesses dos poderosos.
Importa lembrar, especificamente, do papel conspiratório do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), contra o então presidente João Goulart. O IPES e o IBAD não eram simples grupos de extrema direita disseminadores de propaganda anticomunista, mas também agentes desestabilizadores financiados por capital externo com o intuito da venda do patrimônio estratégico nacional para grandes grupos econômicos locais e internacionais.
No livro “Sociedade de Risco”, o alemão Ulrich Beck revela preocupação com esse cenário atual quando a discussão sobre os temas envolve informações sobre política, democracia e interesse coletivo. Isso porque pode-se levar o senso comum a entendimentos divergentes sobre a própria realidade. Conclui Beck que, no processo de modernização, a política acabou por render-se “a uma espécie de consentimento prévio em relação a metas e resultados que continuam sendo desconhecidos e inominados”.
E quanto a você, qual o seu movimento?
* Eduardo Rodrigues de Souza é advogado, professor e mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSal, e membro da Comissão Nacional de Agronegócio da OAB. É vice-presidente da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini da Bahia e secretário-geral do PDT no estado.