Desde março a Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal (STF) tinham conhecimento do chamado desvio de finalidade do processo de impeachment. Desde aquela época estavam de posse da PGR e do STF as gravações de conversas de Sérgio Machado com Romero Jucá indicando claramente que a queda de Dilma Rousseff era passo essencial para conter os avanços da Lava Jato.
Nada se fez. Ignoraram-se as provas que não mereceram sequer o privilégio dos vazamentos orquestrados cotidianamente pelos investigadores da Lava Jato.
Esse fato suscita um conjunto de indagações.
A primeira, é que não havia lógica jurídica ou estratégia de investigação que justificasse o ritmo imprimido à Lava Jato, por ser tecnicamente impossível trabalhar todas as frentes abertas. A abertura de centenas de frentes afronta a boa técnica de investigação.
Insistiu-se nessa estratégia blitzkrieg visando o jogo político. A multiplicidade de operações permitiu acumular munição para ser utilizada politicamente, como reforço às estratégias concatenadas com outros parceiros políticos.
Há duas interpretações para esse jogo.
A benigna é que, sabendo da propagação desse modelo de corrupção política por todo o sistema político, o Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot teria desenhado uma estratégia gradativa de comer os esquemas de forma fatiada.
A cética é que os vazamentos (e omissões) visariam beneficiar um grupo político específico – o PSDB – em detrimento de outros partidos.
Não há dúvidas sobre as razões da conversa de Jucá não ter sido divulgada em março: se divulgada, impediria a queda de Dilma. Deixou-se Dilma ir para o cadafalso, com o PGR sustentando que ela e Lula estariam criando obstáculos às investigações. Rodrigo Janot firmou essa convicção, mesmo tendo conhecimento do que estava por trás do golpe.
A dúvida é sobre as razões que levaram ao vazamento de ontem.
Ora, dirão os céticos, mas Aécio Neves foi expressamente citado na gravação. Logo, não haveria viés partidário.
Desde que vazaram as delações anteriores, Aécio tornou-se carta fora do baralho para eleições majoritárias, embora sua sua blindagem prossiga em todas as frentes. A PGR segurou as investigações sobre ele por mais de ano. Quando desovou o pedido de processo no STF (Supremo Tribunal Federal), foi coincidentemente sorteado para o Ministro Gilmar Mendes, que tratou de inviabilizá-lo em um dia.
Nada indica que será retomado, mesmo à luz das novas menções nas gravações de Jucá. E, olhe, que não foi pouca coisa:
Segundo a Folha,
“O nome do senador Aécio Neves (PSDB-MG) também aparece no diálogo, como sendo “o primeiro a ser comido”. “O Aécio não tem condição, a gente sabia disso, porra. Quem que não sabe? Quem não conhece o esquema do Aécio? Eu, que participei da campanha do PSDB…”, falou Machado. “A gente viveu tudo”, se limitou a dizer Jucá.
A estratégia do vazamento
Assim como os vazamentos anteriores, o atual obedece a uma lógica política.
O sistema de poder, em torno de Michel Temer, contempla o PMDB e o PSDB. A banda do PMDB é sustentada por Jucá, Moreira Franco e Geddel Viera Lima. A do PSDB, por Serra.
Temer balança no meio. Em toda sua fase de militância política, sempre se manteve próximo do PSDB.
A divulgação da gravação foi precedida de uma série de episódios ilustrativos da nova etapa do jogo:
1 Mal assume o Ministério das Relações Exteriores, José Serra dispara um comunicado virulento contra vizinhos da América Latina. E anuncia um decálogo tendo como ghost writer Rubens Ricúpero, baseado em uma diplomacia que foi largamente superada pelos tempos, especialmente depois da passagem de Celso Amorim pelo Itamaraty.
2 No dia seguinte, FHC lança Serra presidente tendo como argumento apenas seu pronunciamento. E a Folha solta um editorial enaltecendo a grande mudança que Serra anuncia para o Itamaraty. Em ambos os casos, proclamações extemporâneas de uma competência diplomática que Serra provavelmente não tem, e se tivesse, nem tempo houve para demonstrar.
3 Dois dias depois, explode o grampo de Jucá.
4 Ontem, enquanto o país debatia as gravações de Jucá, corriam rumores de transferência de Serra para o Planejamento.
De uma vez só, as gravações enfraquecem a banda peemedebista do governo Temer, aceleram sua aproximação maior com o PSDB e inviabilizam Aécio Neves.
É pouco?
O pequeno Supremo
No novo normal jurídico, esse tipo de manobra prescinde de justificativas maiores. Provavelmente o PGR não se sentirá obrigado a responder porque manteve essas informações sob sigilo; e porque as informações vazaram depois. Dirá que apenas seguiram os trâmites normais e tudo não passou de coincidência. E os vazamentos? Ah, foi algum advogado das partes que provavelmente vazou, é óbvio!
Quanto ao STF, hoje em dia ele é menor que Gilmar Mendes. Gilmar consegue transformar sua vontade em lei, seja recorrendo a manobras regimentais, como pedidos eternos de vista, até sua atuação no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Além de ser o destinatário final de inúmeros processos no STF de interesse direto de seu grupo político.
Quanto ao Supremo, se apequenou de forma irreversível devido a um desses paradoxos da Justiça, na qual não basta o conhecimento jurídico para vencer: é preciso uma boa dose de atrevimento e de ousadia. E, na quadra atual, o atrevimento dos Ministros militantes se sobrepôs à anomia dos Ministros isentos.
Com a notável exceção de Marco Aurélio de Mello, o Supremo infelizmente deixou de ser uma referência, uma esperança para os que ainda acreditam no primado da Constituição e no fortalecimento da ordem jurídica.
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