Num longo artigo em que se propunha explicar o que entende por direita, o líder católico Frei Betto derrapou em suas paixões religiosas e lá pelo meio do caminho cometeu uma injustiça histórica que o deixa precisamente em companhia de direitistas encaixáveis nas muitas categorias que seu artigo descreve.
— A democracia liberal – diz ele, mapeando o contexto de sua exposição – tem um limite: a supremacia da acumulação do capital em mãos privadas. Todas as vezes que esse privilégio é ameaçado, os democratas aposentam as urnas, rasgam as Constituições e colocam as tropas na rua. Por meio de golpes de Estado ou eleições, instalam governos ditatoriais em nome da ordem, dos bons costumes e da defesa de Deus, família e propriedade.
Perfeito, ninguém discordará dessas ideias. Mas a lista que o artigo apresenta em seguida, confinada à primeira metade do século XX, de “democratas aposentam as urnas, rasgam as Constituições … colocam as tropas na rua [e,] por meio de golpes de Estado ou eleições, instalam governos ditatoriais”, começa por Hitler e termina por ninguém menos que Getúlio Vargas.
A lista inclui Mussolini, Franco, Salazar, Duvalier, Somoza, Trujillo e Stroessner, mas não inclui (por esquecimento?) o cubano Fulgêncio Batista nem Stalin (esquecimento de novo?)
Quanto a Getúlio Vargas, nem o mais passional e vingativo de seus inimigos, Carlos Lacerda, incluiria seu nome numa lista encabeçada por Hitler – e não por espírito de justiça, mas apenas para não comprometer ainda mais sua escassa credibilidade de jornalista.
Lacerda, por exemplo, não ignorava o papel de Getúlio no confronto com Hitler desde antes da Segunda Guerra Mundial, nem a importância política e militar do apoio de Getúlio aos Estados Unidos durante a guerra, nem que nos meses finais desta o Presidente Roosevelt queria fazer do Brasil de Getúlio membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com o mesmo direito de veto dos Estados Unidos e da então União Soviética.
Neste 2024 que marca os setenta anos exatos do suicídio de Getúlio, o sacrifício pessoal com que frustrou os objetivos do golpe contra ele na crise de agosto de 1954 e preservou as principais realizações de seus dois governos, não é possível imaginar que uma inteligência privilegiada e brilhante como a de Frei Betto considere de direita, por exemplo, iniciativas como a Petrobrás e a Eletrobrás, como a legislação trabalhista e a renegociação da dívida externa, como Volta Redonda e a Hidrelétrica de Paulo Afonso.
Só a paixão religiosa pode explicar a lista de Frei Betto e nisso ele se situa no passado intolerante em que algumas correntes do catolicismo não aceitavam um Presidente agnóstico, influenciado na juventude pelas ideias do positivismo de Augusto Comte e sobretudo pelas do socialismo precursor do Conde Henri de Saint Simon.
Isso não faz bem à própria Igreja que Frei Betto integra, entre outras razões porque, ao se assinar como Frei, ele confere a seus julgamentos a autoridade de um imprimatur do qual eles não precisam.
*José Augusto Ribeiro é jornalista e autor da trilogia “A era Vargas”