Cem anos após a sua morte, Euclides da Cunha vive e resiste, como nenhum outro escritor brasileiro, mesmo praticamente banido das escolas e universidades, vítima de um revisionismo politicamente correto imposto por alguns setores intelectuais. Levantamento feito pelo blog nos programas do vestibular 2008 de 46 universidades brasileiras (ver relação abaixo), incluindo a maioria das federais, além de várias estaduais e particulares, revelou a mais absoluta ausência de Os sertões – considerada por nove em dez críticos literários como a maior obra da literatura brasileira – entre os livros indicados para leitura dos candidatos.
O homem que ensimesmou o Brasil, que levou o país a voltar o olhar comovido para dentro de si mesmo, descortinando espetáculos de horror e assombro; o precursor da ecologia quando esta palavra sequer existia; o pai da sociologia brasileira; o “estilista mais dominado pelo sentido escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil e talvez em língua portuguesa”, nas palavras de Gilberto Freire; aquele que, segundo Sílvio Rabelo, não foi superado por nenhum de seus contemporâneos no ideal por “uma estruturação da sociedade sob bases mais justas e mais humanas”; enfim, esse ícone cívico e intelectual da civilização brasileira está sendo proscrito do universo das novas gerações pelo preconceito de alguns.
Novo duelo
Um século depois da tragédia da Piedade, como passou à história o episódio dramático da morte do escritor, após uma troca de tiros com o amante de sua mulher, Dilermando de Assis, e seu irmão Dinorá, Euclides continua travando um duelo. Não mais, agora, por sua honra pessoal, mas em defesa de uma das expressões máximas da intelectualidade brasileira. Neste embate se encontram, de um lado, um dos maiores expoentes do pensamento nacional; do outro, aqueles que se recusam a vê-lo como um homem do seu tempo, influenciado, naturalmente, pelas doutrinas então em evidência, como o positivismo, o determinismo geográfico e as teorias raciais baseadas na eugenia.
Porém, a mesma pena que classificou os povos do sertão como sub-raça também declarou que “o sertanejo é acima de tudo um forte”; denunciou o massacre de Canudos; voltou os olhos da Nação – até então fixo na faixa costeira – para o interior esquecido do país, onde o sertanejo do Nordeste ou o seringueiro da Amazônia não passavam de cidadãos invisíveis, totalmente ignorados pela sociedade litorânea.
Apesar do banimento imposto por setores do meio acadêmico, um olhar panorâmico pelo Brasil de hoje – como lançou Euclides genialmente no capítulo inaugural de Os sertões, descrevendo em perspectiva tridimensional o relevo brasileiro como se o vislumbrasse do alto, a bordo de uma improvável nave espacial a flutuar pelos céus novecentistas –, revelaria, além dos aspectos geográficos e geológicos descritos pelo escritor, um euclidianismo latente em todo o país, transbordando até para o exterior (o escritor franco-mauriciano Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prêmio Nobel de Literatura de 2008, foi buscar em Os Sertões a inspiração para a construção do romance A Quarentena – conforme declarou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 1997 –, que lhe rendeu a indicação da Academia Sueca e o cheque de um milhão de euros, pago no final do ano passado. Ele segue os passos do peruano Mario Vargas Llosa, cuja Guerra do fim do mundo apresenta uma reconstrução ficcional da luta de Canudos, mesclando personagens reais e imaginários).
Eventos do centenário
A mobilização em torno do centenário de morte de Euclides da Cunha oferece uma boa medida de sua presença nacional. Neste momento, uma expedição chefiada por um ex-advogado de Chico Mendes, o desembargador Arquilau de Castro Melo, se prepara para subir, de barco, o Alto Purus, no extremo oeste da Amazônia brasileira, refazendo a rota que levou Euclides da Cunha, como enviado do Barão do Rio Branco, a consolidar a anexação do Acre pelo Brasil. Na Paraíba – um dos vários estados nordestinos que acessam, pela porta dos fundos, o palco sombrio do flagelo da seca e da tragédia de Canudos –, um projeto do Conselho Estadual de Cultura propõe à sociedade paraibana revisitar, este ano, o autor de Os sertões intensamente. Em Cantagalo, na Região Serrana do Estado do Rio, berço do escritor, foi aberta em fevereiro, diante do busto do mais ilustre filho da terra, a programação oficial do projeto “100 anos sem Euclides”. Em São Paulo, a cidade de São José do Rio Pardo se mobiliza para realizar, pela 97ª vez consecutiva, a Semana Euclidiana, que anualmente atrai uma romaria fervorosa de leitores e estudiosos ao local em que o escritor-engenheiro construiu, na virada do Século XIX para o XX, uma ponte em estrutura metálica e a redação final de sua obra-prima.
Seu legado permanece sendo estudado e debatido pelo país afora.
O Euclides pensador continua motivando, hoje, acaloradas discussões em torno das idéias defendidas por ele nas mais diversas áreas do conhecimento, pelas quais viajou alucinadamente, percorrendo tanto o caminho das ciências naturais – geografia, geologia, biologia, botânica – quanto o das sociais.
O Euclides estilístico não suscita polêmica menor. O rótulo de rebuscado ainda pontua e ressurge, renitente, pelo preciosismo com que selecionava as palavras, muitas retiradas de um vocabulário técnico adstrito às várias matérias científicas desfiadas em sua obra, para com elas compor um texto que, dada a complexidade sintática, já foi até comparado ao de Camões.
Como planta brava do sertão, Euclides da Cunha resiste e sobrevive a toda aridez. É um mandacaru a dessedentar qualquer um que beber do seu sumo.