Espiões na pele de diplomatas


23/07/07

Integrantes do Itamaraty que serviram à comunidade de informações foram beneficiados na carreira pública, mas sofreram preconceito dos colegas

Depois da análise de 20 mil páginas de informes secretos, o Correio identificou a maior parte dos diplomatas que dirigiram o Centro de Informações do Exterior (Ciex) ao longo de 19 anos. Antes de chegarem ao posto máximo do órgão, esses profissionais demonstraram sua “eficiência” coordenando as atividades de perseguição política em embaixadas brasileiras. Um requisito para integrar o Ciex era ter o curso de planejamento estratégico da Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, ou ter passado pelo treinamento de agente na Escola Nacional de Informações (Esni), em Brasília.

Diplomatas que trabalharam na comunidade de informações contaram à reportagem que eram vistos com desdém e preconceito pelos colegas. Nos corredores do ministério havia uma anedota de que os diplomatas eram classificados em três grupos distintos, segundo suas atividades. No primeiro grupo estavam os chamados “destiladores de quinta essência”, geralmente aqueles dedicados a temas jurídicos, de política internacional ou defesa comercial. Ocupavam uma espécie de nível superior na escala evolutiva da diplomacia.

O segundo grupo era formado pelos “estivadores”, diplomatas lotados em funções de administração na Secretaria de Estado. Esses funcionários, embora treinados para o exercício da diplomacia, acabavam chafurdados em meio a pilhas de papel, se transformando em meros burocratas. Ainda não haviam sido criados os cargos de assistentes e oficiais de chancelaria, e os próprios diplomatas tinham que carregar o piano da burocracia.

O terceiro e último grupo reunia o pessoal recrutado para os sistemas de informação e contra-informação. Esses diplomatas eram apelidados de “lixeiros”, numa referência claramente pejorativa às atividades que exerciam. Na cultura geral do Itamaraty, a espionagem era uma atividade baixa, sem glamour e dignidade, especialmente se exercida sob uma ditadura. Por causa do preconceito e da natureza da atividade de inteligência, os agentes-diplomatas acabaram por se fechar numa restrita fraternidade, que comportaria os membros da Divisão de Segurança de Informação (DSI) do Itamaraty — alguns com passagem pelo Ciex —, criado em 1967.

As mazelas, no entanto, eram compensadas por uma rápida ascensão profissional. Depois de fazerem “o trabalho sujo”, os diplomatas-agentes eram promovidos em menos tempo que os demais e também enviados a postos importantes no exterior. Um exame detalhado das fichas profissionais desses servidores, obtidas com exclusividade pelo Correio, demonstra como o serviço secreto serviu de atalho na hierarquia da carreira diplomática.

Cúpula
As atividades do Ciex podem ter passado despercebidas para a maior parte do funcionalismo público e a toda uma sociedade, mas não para a cúpula do Itamaraty. É de se esperar que o ministro de Estado e o secretário-geral soubessem o que se passava no 4º andar do Anexo I do ministério. Enquanto respondia a determinações do SNI, o serviço secreto diplomático também seguia as diretrizes da política externa — era como servir a dois amos ao mesmo tempo.

Dessa maneira, grandes nomes da diplomacia, como os chanceleres Antonio Azeredo Silveira (1974-79) e Ramiro Saraiva Guerreiro (1979-85), foram cúmplices dos trabalhos do Centro de Informações do Exterior. O mesmo ocorreu com Juracy Magalhães, que viu o Ciex nascer, Magalhães Pinto (1967-69) e Mário Gibson Barbosa (1969-1974). Guerreiro, antes de ser ministro, chefiou a Secretaria de Estado, de 1974 a 78, despachando diariamente com o diretor do Ciex.

Passaram pela Secretaria de Estado Jorge de Carvalho e Silva (1969-74), Dário Moreira de Castro Alves (1978-79), Carlos Calero Rodrigues (1984-85) e João Clemente Baena Soares (1979-84), que há poucos anos integrou a Comissão de Notáveis responsável por redigir o projeto de reforma das Nações Unidas. Curiosamente, coube também a um secretário-geral a decisão de preservar a memória do serviço secreto. O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, que chefiou a Casa entre 1985 e 1990, salvou da destruição os 32 volumes — com mais de 8 mil informes — que compõem o arquivo secreto do Ciex. No alvorecer da democracia, o SNI determinou a destruição de milhares de documentos da repressão, na tentativa de apagar evidências e evitar “revanchismos”. Flecha de Lima se negou a cumprir tal ordem.

Correio Brasiliense


23/07/07

Integrantes do Itamaraty que serviram à comunidade de informações foram beneficiados na carreira pública, mas sofreram preconceito dos colegas

Depois da análise de 20 mil páginas de informes secretos, o Correio identificou a maior parte dos diplomatas que dirigiram o Centro de Informações do Exterior (Ciex) ao longo de 19 anos. Antes de chegarem ao posto máximo do órgão, esses profissionais demonstraram sua “eficiência” coordenando as atividades de perseguição política em embaixadas brasileiras. Um requisito para integrar o Ciex era ter o curso de planejamento estratégico da Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, ou ter passado pelo treinamento de agente na Escola Nacional de Informações (Esni), em Brasília.

Diplomatas que trabalharam na comunidade de informações contaram à reportagem que eram vistos com desdém e preconceito pelos colegas. Nos corredores do ministério havia uma anedota de que os diplomatas eram classificados em três grupos distintos, segundo suas atividades. No primeiro grupo estavam os chamados “destiladores de quinta essência”, geralmente aqueles dedicados a temas jurídicos, de política internacional ou defesa comercial. Ocupavam uma espécie de nível superior na escala evolutiva da diplomacia.

O segundo grupo era formado pelos “estivadores”, diplomatas lotados em funções de administração na Secretaria de Estado. Esses funcionários, embora treinados para o exercício da diplomacia, acabavam chafurdados em meio a pilhas de papel, se transformando em meros burocratas. Ainda não haviam sido criados os cargos de assistentes e oficiais de chancelaria, e os próprios diplomatas tinham que carregar o piano da burocracia.

O terceiro e último grupo reunia o pessoal recrutado para os sistemas de informação e contra-informação. Esses diplomatas eram apelidados de “lixeiros”, numa referência claramente pejorativa às atividades que exerciam. Na cultura geral do Itamaraty, a espionagem era uma atividade baixa, sem glamour e dignidade, especialmente se exercida sob uma ditadura. Por causa do preconceito e da natureza da atividade de inteligência, os agentes-diplomatas acabaram por se fechar numa restrita fraternidade, que comportaria os membros da Divisão de Segurança de Informação (DSI) do Itamaraty — alguns com passagem pelo Ciex —, criado em 1967.

As mazelas, no entanto, eram compensadas por uma rápida ascensão profissional. Depois de fazerem “o trabalho sujo”, os diplomatas-agentes eram promovidos em menos tempo que os demais e também enviados a postos importantes no exterior. Um exame detalhado das fichas profissionais desses servidores, obtidas com exclusividade pelo Correio, demonstra como o serviço secreto serviu de atalho na hierarquia da carreira diplomática.

Cúpula
As atividades do Ciex podem ter passado despercebidas para a maior parte do funcionalismo público e a toda uma sociedade, mas não para a cúpula do Itamaraty. É de se esperar que o ministro de Estado e o secretário-geral soubessem o que se passava no 4º andar do Anexo I do ministério. Enquanto respondia a determinações do SNI, o serviço secreto diplomático também seguia as diretrizes da política externa — era como servir a dois amos ao mesmo tempo.

Dessa maneira, grandes nomes da diplomacia, como os chanceleres Antonio Azeredo Silveira (1974-79) e Ramiro Saraiva Guerreiro (1979-85), foram cúmplices dos trabalhos do Centro de Informações do Exterior. O mesmo ocorreu com Juracy Magalhães, que viu o Ciex nascer, Magalhães Pinto (1967-69) e Mário Gibson Barbosa (1969-1974). Guerreiro, antes de ser ministro, chefiou a Secretaria de Estado, de 1974 a 78, despachando diariamente com o diretor do Ciex.

Passaram pela Secretaria de Estado Jorge de Carvalho e Silva (1969-74), Dário Moreira de Castro Alves (1978-79), Carlos Calero Rodrigues (1984-85) e João Clemente Baena Soares (1979-84), que há poucos anos integrou a Comissão de Notáveis responsável por redigir o projeto de reforma das Nações Unidas. Curiosamente, coube também a um secretário-geral a decisão de preservar a memória do serviço secreto. O embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, que chefiou a Casa entre 1985 e 1990, salvou da destruição os 32 volumes — com mais de 8 mil informes — que compõem o arquivo secreto do Ciex. No alvorecer da democracia, o SNI determinou a destruição de milhares de documentos da repressão, na tentativa de apagar evidências e evitar “revanchismos”. Flecha de Lima se negou a cumprir tal ordem.

Correio Brasiliense