COBERTURA DA CRISE
Pauta da recessão e os dilemas duvidosos
É bem conhecido o poder da imprensa na produção de realidades. E sabemos que não há neutralidade nem inocência na informação. Há sempre valor na escolha do que e como informar.
Não é realista imaginar a mídia imune a conflitos políticos e filosóficos e, menos ainda, aos interesses econômicos. Por isso mesmo, devemos ter sempre em conta que notícias e comentários têm o poder de fortalecer e enfraquecer expectativas, de valorizar e desvalorizar ativos e de influenciar decisões de governo.
No caso da cobertura desta crise econômica, parecem prevalecer numa parte importante da imprensa brasileira duas tendências que merecem ser acompanhadas e avaliadas por suas influências e seus efeitos. Uma é a profecia recessionista e a outra é a ressurreição do conflito entre liberais e intervencionistas.
Dizer que a recessão é inelutável é uma idéia tão falsa e nociva como dizer que não há recessão.
Co-protagonistas da história
Atribui-se, em amplos e privilegiados espaços da mídia, um sentido universal, absoluto e indiscutível à recessão, que evidentemente já começou em diversos países. O resultado é a multiplicação do medo e a indução a decisões alimentadoras de mais recessão. É uma profecia auto-realizável, aquela que cumpre a si mesma.
É claro que uma situação grave como esta crise exige da imprensa esforço para revelar perdas, causas, riscos e ameaças. Mas também é preciso mostrar possibilidades e oportunidades. O trabalho que se faz e o que pode ser feito para atenuar e vencer a crise. E apontar as diferenças. Há os que perdem e também os que ganham. Há os que são mais e menos afetados.
Há decisões que estão sendo e serão tomadas que podem antecipar ou retardar soluções. E que irão alocar os custos da crise entre indivíduos, empresas e países.
Vale observar que a parte da mídia que parece mais empenhada em generalizar e potencializar a recessão é a mesma que mais fomentou, durante décadas, a profecia da felicidade eterna prometida pelos que comandaram a economia global nesse período.
Mais do que noticiaristas e comentaristas, alguns jornalistas foram co-protagonistas dessa história. Hoje, estes mesmos passaram a ser os mais assíduos e radicais disseminadores de informações e conceitos igualmente nocivos à sociedade, agora na direção contrária.
Confundir público e privado
Não é certo que a recessão vai ser tão grave no Brasil como em outros países e também que a única coisa a fazer é esperar a desgraça. É preciso, ao menos, dar espaço à dúvida sobre a possibilidade de sofrermos menos – e mesmo de termos oportunidades nesta crise. Na maioria das vezes isso não é considerado ou é desacreditado liminarmente.
Também não é correto dizer que todas as medidas do atual governo são erradas. Isso de culpar e atacar o governo de forma irrestrita evoca a mesma atitude do PT quando era oposição, demonizando o presidente Fernando Henrique. Já é hora da política no Brasil sair deste redemoinho.
A outra tendência da cobertura da crise é a ressurreição do debate entre liberais e intervencionistas. Como isso ressoa a coisa do além, vale recordar o defunto Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas: “Ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares”.
Talvez seja esta compulsão tão humana de confundir público e privado que explique a volta da velha rusga entre liberais e intervencionistas com força suficiente para comandar a pauta da cobertura da crise econômica. Afinal, há muito dinheiro em jogo e a vitória ou derrota de uma idéia, mesmo combalida, significa alguns bilhões a mais ou a menos em rubricas orçamentárias e contas bancárias.
Poder e responsabilidade
Artigos e comentários revigoram, assim, dilemas duvidosos como Estado e mercado; regulação e liberdade financeira; investimento público e responsabilidade fiscal; demanda interna e exportação; e programas sociais e boa governança.
Mais sábio é reconhecer que um lado não vive sem o outro. E ficar atento para o que realmente importa: a briga pelo dinheiro e, sobretudo, a construção do caminho para sair da crise. Isso vai depender menos desse debate carcomido e mais da lucidez da sociedade e do pragmatismo de governantes para restabelecer o crédito e os investimentos.
O que parece haver de comum nessas duas tendências da cobertura da crise é o efeito de mais turvar do que clarear os acontecimentos e as perspectivas de solução. Em horas como esta, quando não há segurança em relação a diagnósticos e remédios, é que a sociedade mais precisa da mídia para se informar e buscar elementos para refletir. É nesta hora que o poder da imprensa é maior; e também maior sua responsabilidade, por afetar o presente e influenciar o futuro.