A última frase da obra prima de Gabriel Garcia Marques, “Cem anos de Solidão”, diz assim: “…porque as estirpes, condenadas a cem anos de solidão, não tinham uma segunda chance sobre a terra”. Confesso que imediatamente ao final desta leitura, refleti sobre o centenário de meu avô. Associei imediatamente a solidão, daquele que, por razões idealistas de elevado amor à Pátria, pagou o preço da injustiça com a sua própria vida, no desterro do exílio.
Sei bem que esta é uma homenagem a um aniversário de um herói da Pátria. Dia primeiro de março completaria cem anos meu avô, João Marques Belchior Goulart. Impensável a tentativa de falar em Jango, sem ingressar nas profundezas de uma história trágica, de injustiças absurdas, que, porém, tornam clara a compreensão de que as tiranias podem fortalecer aos que descendem de homens ou mulheres que um dia sonharam. É o meu caso. Desculpem, mas hoje não acredito em facilidades, mas sim na luta. Foi meu avô quem me ensinou.
Logo, penso em gratidão, penso em perdão. Difícil a missão de seguir a história de uma estirpe, após cem anos de solidão, recebendo como herança um legado de valores imateriais, de gente que acredita em um sonho de utopia, num mundo onde poucos querem pensar além das suas próprias necessidades individuais. Não é fácil sonhar, em ambientes hostis aos sonhos. Só que o sonho e a fé, acredito eu, nos mantêm de pé. Nesse sentido, muito me ajuda uma frase de um pensador chamado TS Eliot, que falou um dia: “Numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.
Há quem diga que meu avô “fugiu“ para o exílio. Eu sou daqueles que andam na direção contrária, dos que percebem que o Presidente João Goulart evitou não apenas uma (64), mas duas guerras civis no Brasil (61). Para ser preciso, faz algum tempo consigo enxergar o que efetivamente refletiu nas ações políticas deste homem muito à frente de seu tempo, foi exatamente a consciência crítica de um humanista com personalidade subversiva. Subverter qualquer forma de ordem injusta, independente de classes sociais, é a verdadeira revolução permanente de quem não se conforma com as iniquidades.
Me orgulha ser descendente de um rico estancieiro que lutava contra as oligarquias rurais, para efetivar de fato a reforma agrária no Brasil. Diferente do que muitos insistem em afirmar, a reforma agrária já estava em andamento, com a assinatura do decreto da SUPRA, em praça pública no comício do dia 13 de março de 64. Entre muitas outras medidas propostas pelas reformas de base, reformas inclusivas que atingiriam a base (e não apenas a superfície) dos problemas sociais, políticos e econômicos da nossa nação, restava evidenciado o valor de um homem comprometido com as condições de vida dos trabalhadores mais humildes.
Sobre “humildade”, ressalto desde já que, mesmo não havendo conhecido meu avô, foi ele quem me ensinou que não existe “identidade financeira”, tão reverenciada por alguns abastados. Nosso respeito deve ser aos que tem caráter, dignidade, postura, e não uma recheada conta bancária. Nosso respeito, é para quem abre mão de seus próprios interesses, pensando no bem de uma família coletiva. Aos que fogem da mesquinharia de um mundinho pautado pelo consumo, aos que especulam a felicidade com dinheiro. Nosso respeito é pelos trabalhadores do Brasil.
Se nossa alma pode ser gigante, se nosso povo pode ser magnífico, se temos as condições de sonhar e acreditar, porque nos conformamos com tão pouco? Jango mostrou que um sorriso franco, um abraço sincero e um ideal solidário para todos e não para poucos, tem muito mais força do que “arminhas” de plantão. Não se constrói o destino de um povo com violência, mas sim com diálogo e compreensão. É o que eu penso. E sei que é o que meu avô ensinaria hoje.
Nesta data tão especial, vale lembrar do menino que nasceu em 1919, na região do Iguariaçá, hoje Itacurubí, ontem São Borja. Guri este que, mesmo oriundo de um berço privilegiado financeiramente, sempre fez questão de se misturar com o povo; jamais como um rei, porém apenas como um irmão mais velho, que ali estava para ajudar. Atitude espontânea, talvez hoje vista com perplexidade por alguns. Num mundo de hipocrisia, diretamente influenciado pelos “valores líquidos” (Bauman), a sensibilidade social é “coisa de comunista”.
Precisamos de mais Jangos, insubstituíveis no transcurso de nossa história. Precisamos de gente com coragem para enxergar além do horizonte egoísta, dos que passam pela vida e não deixam muitas saudades. Precisamos de quem saiba que o tempo se encarrega de assuntar as circunstâncias. Precisamos de quem perceba que o julgamento imediato, normalmente é precipitado. O tempo, para Jango, sempre lhe foi favorável. Pensando exatamente no tempo, certo dia me aventurei a escrever um verso. Neste centenário, permitam-me. É assim:
“Não preciso de ti para ser, o que talvez tu não imagines que eu seja;
E não importa o que eu agora não veja, pois pobre do inocente útil que fraqueja, ignorando valores que no fundo almeja;
Saiba que nem tanta importância te dou nesta vida, ressalvada a gratidão por tua injustiça oferecida;
Apenas percebo no meu norte, pela minha singela experiência de sorte,
Uma orientação para ser,
Um homem errante, porém a cada dia mais forte”.
Eu não tive a oportunidade de conviver com meu avô. Tinha dois meses de vida quando ele partiu. Certamente, em razão da dureza do exílio. Quem sabe, pela perseguição implacável dos covardes, que ceifaram a vida de Jango aos 57 anos de idade. Único Presidente brasileiro a morrer no exílio. Tudo isso me torna apenas consciente, de ter cautela com o chão onde piso, pisando com força a cada passo dado. De conhecer “as manhas e as manhãs”, ou “as massas e as maçãs”, sem nunca esquecer que a vida é um aprendizado diário. Que, apesar de tantas injustiças, nossa felicidade depende da capacidade de contemplação.
Por obvio não estarei jamais a altura da grandeza um homem público de tamanha consagração histórica. O que me resta é manter a brasa acessa, do legado do trabalhismo de Vargas, com todos meus esforços para que, talvez um dia, a chama de amor, de liberdade, reacenda com a energia necessária para este nosso País-continental. Tenho certeza de que meu avô não morreu em vão. Os cem anos de solidão, da nossa estirpe, serviram para que, justamente, tenhamos sim uma segunda chance sobre a terra”.