A saída democrática para o impasse do desmonte da Petrobrás é uma só: quanto privatizarem, tanto reestatizaremos
Se o governo, em qualquer dos seus níveis, resolver desapropriar uma propriedade particular para realizar um empreendimento público qualquer, como uma estrada ou uma obra viária, o cidadão que sofre a desapropriação tem uma série de direitos e garantias. Afinal, no Estado de Direito o ordenamento jurídico tutela o proprietário privado no seu enfrentamento contra o Poder Público com garantias que devem ser cumpridas em um processo de desapropriação. A própria indenização é uma dessas garantias, expressa desde as primeiras declarações de direitos das revoluções liberais.
Não há, no entanto, nenhuma garantia ou proteção jurídica aos cidadãos quando o governo decide transferir ao setor privado determinados bens da coletividade, como uma empresa estatal, a prestação de um serviço público ou a exploração de um bem público. Pelo contrário, a privatização é considerada uma opção absolutamente livre e legítima para ser adotada, sem qualquer tipo de contestação. A expropriação dos bens privados, por sua vez, é quase um tabu. A grande mídia exalta os privatizadores e condena aqueles que ousam estatizar, nacionalizar ou recuperar bens públicos transferidos inadequadamente aos privados. Para aqueles, o paraíso da boa governança e o aplauso do “mercado”. Para estes, o inferno do populismo (ou bolivarianismo, a depender do caso) e da reprovação unânime dos meios de comunicação de massa.
O que ninguém diz é que, ao privatizar uma empresa estatal ou qualquer parcela do patrimônio público, o governo está expropriando a população de bens públicos que são de sua titularidade. Simples assim. Na privatização, o governo age do mesmo modo que na expropriação. Da mesma forma que desapropria uma propriedade privada, na privatização o governo aliena a propriedade pública. O problema é que o proprietário privado pode contestar e tem garantias, o povo não.
Todo processo de privatização é uma expropriação de bens que deveriam integrar permanentemente o patrimônio público, decidida por uma autoridade política que exerce o poder temporariamente. No processo de privatização, o governo não vende o que é dele. Na privatização, o governo vende o que pertence a todos nós. E sem nos consultar sobre isso.
O governo é um administrador fiduciário, ou seja, atua apenas sob mandato. Não pode dispor dos bens públicos ao seu bel-prazer. Ele não é proprietário das empresas estatais, mas apenas seu gestor.
Os bens públicos não são facilmente recuperáveis. Os investimentos de imensas quantias de recursos públicos, aplicadas de forma planejada a longo prazo, o sacrifício de milhões de brasileiros não pode ser dissipado para cobrir um déficit conjuntural nas contas públicas. A venda dos ativos de uma empresa estatal como a Petrobrás significa a desestruturação do sistema energético integrado, fundamental para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais e uma inserção internacional competitiva, não subordinada.
A fragmentação da Petrobrás substitui, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas.
Nunca é demasiado recordar que a Petrobrás é fruto de uma das maiores campanhas de mobilização popular ocorridas na história brasileira, a Campanha “O Petróleo é Nosso”.
A proposta de criação de uma empresa estatal com monopólio sobre a indústria petrolífera não surgiu de um gabinete, mas das ruas. Essa empresa, criada por Getúlio Vargas em 1953, tinha e tem por objetivo garantir o abastecimento nacional de combustíveis e a segurança energética do Brasil. Para isso, imensas quantidades de dinheiro público foram utilizadas para financiar a estruturação e o crescimento da Petrobrás, que, em poucas décadas, se consolidou como a maior empresa do país e uma das maiores do mundo em sua área de atuação. Não bastasse o tamanho e a importância da Petrobrás para o Brasil, a estatal ainda se caracteriza por ser a empresa que mais investe em ciência e tecnologia no Brasil e é detentora de produtos e tecnologias inovadoras que a destacam na indústria petrolífera mundial.
Todo esse patrimônio público, portanto, do povo brasileiro, vem sendo ameaçado com a política de desmonte e venda de ativos iniciada no segundo Governo Dilma e ampliada sob Michel Temer e Jair Bolsonaro. Política esta que entrega a preço vil e sem concorrência parcelas do patrimônio da Petrobrás aos seus concorrentes internacionais, onerando o povo brasileiro com preços abusivos cobrados pelo gás, combustíveis e outros produtos de primeira necessidade.
A venda de ativos da Petrobrás não contribui para reduzir o nível de endividamento da estatal. Ao contrário, na medida em que vende ativos ela reduz sua capacidade de pagamento da dívida no médio prazo e desestrutura sua cadeia produtiva, em prejuízo à geração futura de caixa, além de assumir riscos empresariais desnecessários. O atual plano de negócios da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor, o que restringe o crescimento do mercado interno(1).
É aterrador o que está ocorrendo com a infraestrutura de gasodutos. Atividade tipicamente monopolista, as redes de gasoduto incorporam um enorme investimento histórico da Petrobrás, estando integradas à empresa pela própria natureza do serviço que prestam. Não obstante, o Conselho de Administração da Petrobrás aprovou a venda de 90% da sua maior e mais lucrativa malha de gás, a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), responsável pelo escoamento de 70% do gás natural do país, que foi entregue a um grupo de investidores estrangeiros, liderados por uma empresa canadense (2).
Vamos deixar de lado o fato de ter sido uma venda juridicamente nula, dada a ausência de licitação pública, como determinam o Plano Nacional de Desestatização e o artigo 29 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, que não incluem a venda de ativos de uma estatal como caso de dispensa de licitação pública. O transporte do gás natural foi monopolizado por uma multinacional. Não só a Petrobrás, como qualquer outra empresa que produzir petróleo no país será obrigada a pagar o preço que o grupo estrangeiro exigir, pois não existem outros gasodutos na região.
Em um verdadeiro “negócio da China”, ou melhor, “negócio do Brasil”, a Petrobrás passou a dispender cerca de R$ 3 bilhões ao ano para utilizar os gasodutos da Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG), empresa que foi alienada por ela mesma por cerca de R$ 36 bilhões. Ou seja, em poucos anos a estatal vai gastar todo o ‘lucro’ com a venda do ativo em pagamentos de aluguel do gasoduto que antes fazia parte do seu patrimônio (3) . Isso ganha contornos ainda mais graves, se levarmos em conta o crescimento da produção de gás natural, com a exploração do pré-sal, cujas principais jazidas estão justamente no Sudeste. O que aconteceria com o administrador de uma empresa privada que efetivasse um negócio dessa natureza? Certamente não seria louvado pelo “mercado”…
Mesmo com a malfadada flexibilização do monopólio, a Petrobrás segue sendo uma empresa estatal, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, com maioria do capital votante sob controle da União. Na condição de sociedade de economia mista, ela possui acionistas privados. Hoje, inclusive, cerca de 30% de seu capital é detido por investidores estrangeiros. Mas, como empresa estatal, o interesse público deve sempre prevalecer sobre o interesse privado dos acionistas minoritários.
Desde o governo Temer, sob Pedro Parente, a Petrobrás tem sido dirigida para privilegiar o acionista em detrimento do interesse público. A venda de seu parque de refino, decidida pelo Conselho de Administração antes mesmo de firmado um acordo ilegal com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) é mostra disso. A venda da BR Distribuidora, uma privatização travestida de venda de ações, também. Aliás, a possibilidade de formação de monopólios regionais com a venda das refinarias da Petrobrás não foi jamais questionada, nem pelo suposto órgão de defesa da concorrência, nem pelos defensores do chamado livre mercado. Monopólio privado, ao que parece, não é um problema para nenhum dos nossos ditos liberais.
Mas nada é mais contundente nesta “nova” gestão do que a política de preços de combustíveis adotada desde a presidência de Parente. Chamada hoje de preço de paridade de importação (PPI), a companhia usa as variações do dólar e do barril de petróleo para determinar o preço do produto vendido às distribuidoras, que o repassam imediatamente para o valor final do produto. A ideia aqui é garantir a maior lucratividade para a empresa, valorizando suas ações (ou o seu valor de mercado). Como a Petrobrás é dominante no mercado de importação e exportação de óleo e derivados, pelo seu tamanho, é a price maker (sic) do mercado interno, fazendo com que todo o setor siga seus passos.
A ideia do PPI é fazer a empresa valorizar seus papéis nas bolsas, especialmente de São Paulo e Nova York. Não vamos entrar no mérito se essa é a maneira mais adequada de se precificar uma companhia. O que é fato é que são acionistas privados, notadamente os investidores estrangeiros, que mais ganham com essa estratégia.
O único “detalhe” aqui é que é a Petrobrás é estatal. Empresas estatais são criadas por lei para realizar determinada política pública. Tanto é assim que mesmo a Lei das Sociedades por Ações em seu artigo 238 garante que a pessoa jurídica que controla a sociedade de economia mista poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender o interesse público que justificou sua criação. Aliás, o artigo 117 da mesma lei diz que orientar a companhia para fim estranho ao interesse nacional é modalidade de exercício abusivo de poder de controle, ensejando em responsabilização do acionista controlador.
Nada mais óbvio. Uma estatal não existe para dar lucro. Ela também não existe para satisfazer fundos de investimentos, sérios ou abutres. Mesmo tendo o capital aberto, a Petrobrás continua sendo do povo brasileiro, que delega à União a função de gerir a empresa.
A disputa aqui é mais um capítulo da briga entre o interesse público e o interesse do acionista. Esse conflito é recorrente no Brasil, que, desde o Governo do General Geisel, optou por utilizar suas estatais para fomentar nosso diminuto mercado de capitais. Nos Estados Unidos, onde existem mais de 2 mil empresas estatais, nenhuma tem capital aberto. Aliás, a gritaria da Faria Lima em torno da substituição da presidência da empresa diz muito sobre quem são: podem morrer mais de 250 mil pessoas; podem defender uma nova ditadura. Nada disso incomoda o “mercado”. O que não pode é acabar com a festa dos “investidores” (4) . Essas contradições e essa sangria de recursos públicos só irá parar quando a Petrobrás abandonar o modelo de sociedade de economia mista e passar a ser 100% estatal.
Não se trata de uma simples “quebra de contratos”, a situação é um pouco mais complicada. Empresas e investidores, nacionais ou estrangeiros, que adquiriram, depois do golpe de 2016, recursos do povo brasileiro estão cometendo um crime. Os preços pagos são incompatíveis com o mercado (5) e a situação institucional e política não é exatamente daquelas que inspiram confiança ou segurança. Não houve a realização de nenhuma concorrência pública ou procedimento competitivo, além da violação de inúmeras leis, inclusive a própria lei do Plano Nacional de Desestatização (Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997), cujo artigo 3º exclui expressamente as atividades de competência exclusiva da União segundo o artigo 177 da Constituição, ou seja, todas as atividades do setor petrolífero, da alienação ou transferência de ativos.
Portanto, o que está ocorrendo com ativos da Petrobrás e outros bens estatais estratégicos deve ser equiparado ao crime de receptação. Afinal, um bem público foi subtraído do patrimônio público de forma ilegal, muitas vezes até sem licitação, e vendido a preço vil. A empresa compradora obviamente sabe o que está adquirindo e a que preço. Não há nenhum terceiro de boa-fé envolvido neste tipo de negócio. A saída democrática para o impasse do desmonte da Petrobrás é uma só: quanto privatizarem, tanto reestatizaremos (6).
*Gilberto Bercovici é professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.