Como definir a crise política brasileira de hoje? É fruto do alto nível de corrupção revelado pela operação Lava Jato na qual o PT foi o partido mais envolvido? Ou da intolerância e do ódio de uma classe média moralista que enveredou para a direita? Ou da crise econômica, e dos erros de política econômica praticados pelo governo? Ou da baixa popularidade da presidente? Ou dos abusos de direito praticados pela operação Lava Jato: prisões preventivas transformadas em instrumento de chantagem, vazamentos, etc. Ou do medo que assalta os políticos diante da ação investigativa e judicial? Ou da parcialidade da grande mídia? Ou do oportunismo dos partidos de oposição e do presidente da Câmara dos Deputados? Ou da luta de classes movida pela direita contra um partido de esquerda que fez compromissos mas continuou fiel a seu compromisso de esquerda?
Eu creio que todas essas causas ajudam a explicar a crise, especialmente as duas últimas – o oportunismo dos políticos e a inconformidade das classes dominantes em continuarem a ser governadas por políticos de centro-esquerda. Mas não creio que neste momento do jogo o mais importante seja analisar essas causas.
O essencial, agora, é discutir o desfecho pretendido pelos patrocinadores da crise: o impeachment. Qual a probabilidade de que ele venha a ocorrer? Embora o PMDB tenha abandonado o governo, eu continuo a não acreditar que ele afinal seja aprovado, porque entendo que temos uma democracia consolidada, e o impeachment da presidente Dilma Rousseff, nos termos em que ele está sendo proposto, constitui golpe de Estado.
Um impeachment só pode ser decidido de maneira democrática se for causado por um crime de responsabilidade do presidente. Ora, em sã consciência, todos os brasileiros, inclusive os mais exaltados defensores do impeachment, sabem que não houve crime algum praticado pela presidente que justifique tal medida.
E no entanto esses defensores do impeachment continuam a demandá-lo impavidamente. Inclusive a rainha das revistas neoliberais, The Economist. Na sua edição de 10 de março, reconheceu que não havia base legal para o impeachment para, duas semanas depois, dedicar sua primeira página para apoiar o impeachment, dando para isso uma explicação tola: a nomeação de Lula foi obstrução da Justiça.
Que argumentos os defensores do impeachment realmente apresentam? Não são mais os argumentos jurídicos, porque eles não existem a não ser em pessoas que tenham sido tomadas por emoções como a justa indignação e o apaixonado ódio, ou então nos oportunistas que querem governar sem terem vencido nas urnas, ou então para quem o impeachment é a melhor forma de terminar a crise política e a crise econômica.
Estes dois últimos pontos são, na verdade, os argumentos dos defensores do impeachment neste momento. Eles nos prometem acabar com a crise política que eles mesmo criaram ao não aceitar o veredito das urnas. Ora, não há forma mais antidemocrática de acabar com uma crise do que dar a vitória a quem a criou – a quem não aceitou a derrota, como Aécio Neves, ou a quem não se sentiu protegido pelo governo diante da operação Lava Jato, como Eduardo Cunha. Por outro lado, é duvidoso que a crise termine com o impeachment. Ela perderá intensidade, mas continuará, porque teremos um governo ilegítimo no poder.
Quanto à crise econômica, os economistas liberais nos dizem que ela também seria terminada como por encanto com o impeachment, porque os empresários voltariam a ter confiança e investiriam. Ora, esse foi o principal argumento para que, em 2015, o governo adotasse o ajuste fiscal mais forte que podia. E não funcionou, porque a crise era maior do que se pensava. “Não, mas porque esse governo definitivamente não é confiável”, pode dizer o defensor do impeachment. O que é absurdo.
O maior erro que a presidente Dilma Rousseff cometeu aconteceu no último ano de seu primeiro mandato, quando procurou estimular as empresas industriais com enorme desoneração de impostos; não foi para distribuir benefícios para os eleitores. Como, então, dizer que os empresários não confiarão jamais em seu governo?
Mas para sair da crise econômica o que nos oferecem os defensores do impeachment? Mais ajuste fiscal, quando está na hora de fazer o que o ministro Nelson Barbosa está corretamente fazendo: continuar a cortar a despesa corrente, mas estimular o investimento público, não se importando que o superávit primário seja menor ou mais negativo. Em outras palavras, tendo como principal métrica do desempenho do governo a poupança pública: a receita total menos a despesa corrente.
O golpe parlamentar não resolverá a crise econômica porque ela não se limita à recessão atual. Desde 1980 o Brasil enfrenta um problema de semiestagnação que nem liberais nem desenvolvimentistas lograram superar. Entre 1930 e 1980 a renda per capita cresceu 4% ao ano; desde 1980, apenas 1%. Mas esse crescimento permitiu que os muito ricos ficassem ainda mais ricos, porque se beneficiaram de privatizações e de juros altíssimos, e permitiu que a vida dos mais pobres melhorasse, porque o Partido dos Trabalhadores privilegiou esse setor da sociedade. Não foi, porém, suficiente para atender à classe média tradicional, que, frustrada, rumou em direção à direita.
A meu ver as duas grandes causas que levam o Brasil a crescer muito lentamente e ficar para trás no plano mundial são as baixas taxas de investimento privado e de investimento público. O investimento privado insuficiente decorre da baixa taxa de lucro esperada, que, por sua vez, depende de uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo que só se torna competitiva nos momentos de crise. A baixíssima taxa de investimento público decorre da incapacidade do Estado brasileiro de poupar. Essas duas causas resultam de dois problemas culturais que se reforçam mutuamente: a perda da ideia de nação, que nos faz acreditar que os déficits em conta-corrente são “poupança externa” desde que financiados por investimentos das empresas nacionais (na verdade, implicam apreciação cambial, endividamento externo e desestímulo aos investimentos); e a alta preferência pelo consumo imediato, que nos leva a aceitar esses déficits em conta-corrente porque correspondem a rendimentos reais maiores e a consumo maior.
Se estou certo em meu diagnóstico, é evidente que o governo liberal-ortodoxo que resultará de um eventual golpe parlamentar não resolverá a semiestagnação brasileira, como não resolveu antes, quando, entre 1990 e 2002 estiveram no poder. Como também não resolveu o governo do PT. Por isso é preciso repensar seriamente esse problema, mas não é através de um impeachment que se fará isso.
A questão fundamental que a sociedade brasileira e o Congresso devem definir nos próximos dias ou semanas é se querem dar uma demonstração de maturidade política e respeito à democracia ou não, é se querem se deixar dominar pela intolerância e pelo oportunismo.
A intolerância é a negação do direito do outro à liberdade e ao respeito; é a substituição da política pelo ódio e a violência. A intolerância foi criticada pelos filósofos iluministas e liberais no século XVIII, e desde o século seguinte foi condenada pelos códigos morais da modernidade. Tudo indicava, portanto, que ela estava proscrita nas sociedades democráticas, mas, revestida de juramentos à democracia, ela reapareceu nos países ricos, como podemos ver pela força crescente de partidos de extrema-direita que defendem o racismo, e reapareceu no Brasil, cuja classe dominante não quer mais ser governada por um partido que não esteja a ela subordinado.
A intolerância que parecia amortecida, senão esquecida, de repente reapareceu no Brasil sob a forma de luta de classes. A primeira coisa que me chocou foram as vaias e impropérios que parte do público mais abonado, nos jogos da Copa do Mundo, dirigiu contra a presidente Dilma Rousseff. Em pouco tempo, porém, eu percebi que não se tratava de algo isolado, nem que o fato podia ser atribuído ao calor da hora. Era algo mais amplo. Em artigo para o Interesse Nacional de agosto de 2014, “O mal-estar entre nós”, eu afirmava que “existe hoje no Brasil, em sua elite econômica, mais do que um mal-estar. Para muitos dos seu membros o mal-estar transformou-se em ódio voltado à presidente Dilma e ao PT”. Repeti essa tese em entrevista a Eleonora de Lucena, na Folha, em fevereiro de 2015 – entrevista que colocou o tema na pauta do País.
Hoje, o que define os defensores do impeachment é a intolerância de uns que não admitem opiniões divergentes, o autoritarismo de outros que não se importam em rasgar a Constituição e ainda o oportunismo de outros. Intolerância, autoritarismo e oportunismo dominam hoje a cena política, e impedem que discutamos os nossos verdadeiros problemas. Nós, brasileiros, reconquistamos a política nos anos 1980 quando nos unimos para restabelecer a democracia no Brasil. Formou-se, então, um grande pacto político popular e democrático, que nos deu uma Constituição progressista, nos levou a investir muito mais na educação e na saúde e a reduzir um pouco as desigualdades econômicas que são tão gritantes no Brasil.
Será que agora vamos jogar toda essa maravilhosa experiência democrática no lixo? Não creio. Não apenas porque os trabalhadores e os pobres não apoiam um golpe branco. Também porque não é toda a classe média que se inclinou para a direita e para o autoritarismo. Eu tenho visto uma crítica crescente à forma antidemocrática pela qual o juiz Sergio Moro está conduzindo a operação Lava Jato. Quando essa operação surgiu, eu, como todos os brasileiros, a saudei como um momento de restabelecimento da ética na política. E, de fato, crimes foram descobertos, e os políticos e empresários envolvidos foram processados e julgados.
A partir de um certo ponto, porém, foi ficando claro que o juiz estava recorrendo a expedientes que envolvem abuso de direito, como o uso generalizado da condução coercitiva de pessoas chamadas a depor, sem que antes tenham sido convocadas com data marcada, e os “vazamentos” propositais. Dessa maneira, vimos ser jogada no lixo a honra de pessoas, sem que tivessem tempo para se defender. Estarão os brasileiros dispostos a aceitar essas arbitrariedades da operação Lava Jato e a arbitrariedade maior que é o impeachment apenas para derrotar um partido de esquerda que soube proteger os pobres, mas não soube promover o desenvolvimento econômico? Repito que não creio.
(*) Luiz Carlos Bresser-Pereira é economista, fundador do PSDB e ex-ministro da Fazenda dos governos José Sarney e Fernando Henrique Cardoso