No dia 14 de abril passado, Guido Mantega, ministro da Fazenda, e Henrique Meireles, presidente do Banco Central com status de ministro – “beneficiado” por Lula, em decorrência de acusações que lhe pesam de evasão de divisas, sonegação fiscal e falsidade ideológica – estiveram presentes na Câmara dos Deputados, em depoimento à CPI da Dívida Pública. Conforme era de se esperar, destilaram otimismo. O endividamento não é preocupante.
Para o ministro da Fazenda, a dívida líquida do setor público apresenta uma queda nos últimos anos, as taxas de juros foram reduzidas e o prazo dos títulos da dívida ampliados. A própria dívida externa também seria um problema superado, pois o acúmulo de reservas cambiais nos dá garantias, segurança e capacidade de pagamento. Sobraram elogios até mesmo para a política monetária e as suas metas de inflação, com Mantega enfatizando que não sofremos mais a ingerência do FMI e de bancos internacionais na gestão macroeconômica.
O ministro, que já teve um passado acadêmico com tinturas marxistas, desprezou fatos históricos banais. A adoção da política monetária baseada no modelo de metas inflacionárias, a política fiscal com o objetivo de se alcançar pesadas metas de superávit primário e o regime de câmbio flutuante – características da atual política macroeconômica – foram exigências do último acordo celebrado com o FMI, ainda no tempo de FHC. É verdade que o acordo não mais existe formalmente, mas as políticas recomendadas pelo Fundo deitaram raízes profundas nas cabeças dos nossos dirigentes, a ponto de fazê-los esquecer do passado recente.
Com relação à ingerência dos bancos internacionais, talvez o ministro da Fazenda tenha razão: o comando do Banco Central do Brasil por um executivo, ex-presidente mundial do Bank of Boston, como é o caso de Meireles, talvez não se configure propriamente em uma ingerência, mas sim numa intervenção direta de um credor internacional. Seria tudo apenas patético, não fora a tragédia que essa mesma política representa para milhões de brasileiros que continuam carentes de políticas públicas de qualidade e eficiência, em áreas básicas como a educação, a saúde, a habitação popular, os transportes públicos ou o saneamento.
Conforme tenho constantemente enfatizado, todas essas políticas têm se degradado a olhos vistos nos últimos anos. E dificilmente qualquer análise séria sobre as razões desse processo poderá deixar de lembrar que os recursos públicos para investimentos nessas áreas ficam extremamente prejudicados com as despesas crescentes que as políticas monetária e cambial em vigor acarretam para as contas públicas. A carga de juros paga anualmente aos credores da dívida pública é gigantesca, nunca inferior a R$ 150 bilhões. No ano passado, por exemplo, chegou ao montante de R$ 169 bilhões, incluindo as despesas da União, de estados, e de municípios, de acordo com o próprio ministro.
Conforme o importante trabalho realizado pela Campanha pela Auditoria Cidadã da Dívida, no ano de 2009, 36% das despesas realizadas no âmbito do Orçamento Geral da União – equivalentes a R$ 380 bilhões!! – foram usadas no pagamento de juros e amortizações. Guido Mantega contestou esse dado, pois ele não considera adequada a inclusão das despesas com o pagamento das amortizações, nesse cálculo. O deputado Ivan Valente, do PSOL de S.Paulo e proponente original da CPI, lembrou ao ministro que a própria MP 435/2008 permitiu que o Executivo desviasse bilhões de reais de diversas áreas sociais – incluindo recursos da União, arrecadados pela receita dos royalties do petróleo, objeto de recente e ferrenha disputa entre os estados, justamente para o pagamento de amortizações. Mas nada disso parece abalar as convicções otimistas dos ministros.
A dívida interna em títulos do governo federal ultrapassa hoje a R$ 2 trilhões. Quando Lula assumiu o governo, em janeiro de 2003, a dívida era de R$ 687 bilhões. Se lembrarmos que em janeiro de 1995, quando do início dos governos de FHC, essa dívida era de apenas R$ 59,4 bilhões, dá para se ter uma idéia do que estamos falando em termos de comprometimento das finanças públicas. Com esse tipo de política, baseada em altíssimas taxas de juros, abertura financeira e todo tipo de incentivo à especulação, especialmente por parte de quem têm acesso aos mercados internacionais, não há condição de muita margem de manobra para que políticas voltadas para a maioria da população sejam contempladas com recursos financeiros suficientes.
Nossos atuais dirigentes não se importam com esse tipo de dado. Talvez lhes interessem mais os elogios que a banca internacional, e a tupiniquim, vivem a fazer ao atual governo brasileiro.
Talvez prefiram mesmo observar o crescimento econômico sustentado por uma economia de endividamento das famílias, a partir de mecanismos de crédito em expansão e a um custo financeiro extremamente elevado, com as maiores taxas de juros do mundo. Afinal, a política de valorização do salário mínimo, os programas de transferência de renda aos miseráveis e a geração de empregos de baixa remuneração e qualidade, atende aos mais pobres. Com uma enorme demanda reprimida por bens e serviços, esses setores impulsionam o mercado interno e ao menos até o momento permitem que os dirigentes da economia e da política possam capitalizar o relativo desempenho observado, em particular na comparação com FHC.
Contudo, nem tudo são flores. O que permitiu essa aparente transformação dos efeitos do mesmo modelo, na comparação entre os governos FHC e Lula, foi a conjuntura econômica internacional e especialmente os resultados das contas externas do país. Desde 2003, o furor exportador brasileiro de commodities agrícolas e minerais foi contemplado pela demanda asiática, puxada pela economia chinesa, e permitiu que o Brasil passasse a ter saldos positivo nas nossas transações correntes com o exterior, algo inédito na história recente do Brasil. Porém, essa primavera se encerrou em 2008, quando voltamos a contrair resultados negativos em nossa conta corrente. De um saldo recorde, em 2005, de US$ 14 bilhões, passamos a um déficit de US$ 28,3 bilhões, em 2008, e um resultado novamente negativo, em 2009, de US$ 24,3 bilhões.
Para esse ano, o próprio Banco Central projeta um déficit em conta corrente de US$ 49 bilhões, resultado de um saldo comercial que despenca – em 2006, chegamos a um resultado recorde de US$ 46,5 bilhões, e para 2010 a projeção é que tenhamos um saldo de apenas US$ 10 bilhões. Como a nossa conta de serviços é estruturalmente deficitária, e estimada em US$ 59 bilhões para esse ano, o Banco Central chegou a essa estimativa de déficit de nossas transações correntes, resultado da combinação das projeções feitas para os resultados da conta comercial e de serviços.
É interessante notar que, nessa projeção do déficit da conta de serviços, a estimativa do Banco Central é de uma despesa, somente com remessa de lucros e dividendos, em 2010, da ordem de US$ 32 bilhões, e, com o pagamento de juros da dívida externa – que para Lula acabou, e que para Mantega não é mais um problema – a conta fique em US$ 8,3 bilhões. Seria talvez importante que ambos conversassem, com mais cuidado, com o banqueiro Henrique Meireles.
(*) Paulo Passarinho, economista é presidente do CORECON-RJ