A cada 21 de abril o povo brasileiro relembra Tiradentes que, lá atrás, no século18, lançou o primeiro brado de Independência do Brasil. Relembram-se as datas, aspectos históricos anedóticos, estimula-se a memorização de nomes, mas, nem sempre – o que seria fundamental – a comparar e dimensionar a importância do exemplo do alferes para que o Brasil alcance uma verdadeira independência. As próprias idéias de Tiradentes não são conhecidas em toda a sua profundidade, revolucionárias que são, capazes de atravessar os séculos, de inspirar seguidores, como o revolucionário pernambucano Padre Roma, pai do também revolucionário General José Inácio Abreu e Lima, que, derrotado na insurreição republicana de Pernambuco deixou o Brasil para ser vitorioso ao lado de Simon Bolívar, na Guerra de Independência contra o Império Espanhol, que resultou na União das Repúblicas da Grã-Colômbia.
Cultivamos o esquecimento. Assim como não cultivamos o essencial e vigente na saga de Tiradentes, aos poucos, vamos deixando de valorizar devidamente o precioso exemplo de outro grande mineiro, também falecido, emblematicamente, num dia 21 de abril: Tancredo Neves. Que recado a história quer nos dar ao juntar dois personagens numa mesma data?
Político sábio, Tancredo ofereceu à nação brasileira gestos desprendidos, grandiosos e desinteressados. Gestos de coragem, gestos de amor à Pátria. Será exatamente esta a razão de não registrarmos nos meios de comunicação um esforço sincero e adequado, com raras exceções, para a apreciação do grandioso exemplo de Tancredo Neves?
Tancredo defendia resistir ao golpe
Repassemos a História. Em 1954, quando o capital estrangeiro conspirava para colocar um fim no governo Getúlio Vargas – jamais havia engolido a criação dos direitos trabalhistas, da previdência social, do salário mínimo com valor de compra e da criação da Petrobrás, da Cia Vale do Rio Doce, do Instituto do Açúcar e do Álcool, bem como da limitação das remessas de lucro e a nacionalização da Rádio Nacional – Tancredo foi dos mais fiéis colaboradores ao presidente eleito legitimamente e levado ao suicídio.
Na madrugada dramática de 24 de agosto de 1954, Tancredo propunha a Vargas a resistência ao golpe. A explosão popular de indignação quando noticiada a morte de Vargas dava bem a idéia das imensas condições políticas para resistir ao golpe e derrotá-lo, tal como Tancredo, corajosamente, havia proposto a Vargas na madrugada fatídica da traição nacional. Tancredo, que era Ministro da Justiça de Vargas, tinha pedido ao presidente autorização para prender as lideranças que tramavam o golpe contra o governo legítimo, apoiados pelo poder econômico do capital externo, tão cristalinamente vocalizado por Carlos Lacerda naquela famosa e anti-brasiliana frase: “Vargas não pode ser candidato a presidente. Se o for, não pode vencer o pleito. Se vencer, não deve ser empossado. Se tomar posse, não pode governar”. A ameaça se consumava naquela madrugada traiçoeira terrível. Com a morte de Vargas, o país teve uma aurora banhada em lágrimas dos humildes, e, provavelmente, um anoitecer assustado com o tilintar de brindes dos salões luxuosos a recalcular novas possibilidades de rapinas contra o patrimônio dos brasileiros.
Tancredo dera o exemplo, tinha feito a corajosa proposta, havia proposto mobilizar o povo e os militares legalistas para defender o governo eleito. Pela proposta destemida, patriótica, acompanhada pela solidariedade de Oswaldo Aranha, Tancredo recebe de Vargas sua caneta pessoal, aquela com a qual já havia escrito a Carta Testamento, prometendo sair da vida para entrar na História, na esperança que seu gesto dramático fosse capaz de preservar os direitos do povo brasileiro e os interesses nacionais ameaçados. A ditadura foi apenas adiada por 10 anos. Mas Tancredo havia traçado o seu compromisso com os interesses maiores da nossa Pátria, reafirmado à beira do túmulo de Vargas, em São Borja, onde, décadas mais tarde Lula, levado pela mão de Brizola, comovera-se às lágrimas. Talvez repensasse sobre as críticas injustas que teria desferido contra Vargas, responsável pela criação do próprio sistema Sesi-Senai onde, tendo escapado da pena de morte da fome dos retirantes, conseguira sua primeira profissão.
Com a caneta de Vargas
Com a caneta em mãos durante a longa, escura e dolorosa noite da ditadura, Tancredo é novamente convocado pela história, em 1984, exatamente para comandar a operação política democrática que realizaria o funeral ditatorial. Com a autoridade de quem havia participado de um governo que fora o mais pródigo na construção de direitos sociais e trabalhistas, bem como no fortalecimento do estado-nação e da economia nacional, a Era Vargas, Tancredo representa a síntese das forças que se organizavam para virar a página ditatorial, ainda que a operação de reconquista dos direitos democráticos tivesse que passar pelo interior do Colégio Eleitoral.
A operação ganhou o apoio popular, novamente os brasileiros que foram às ruas pelas Diretas-Já, nas quais encontraram um Tancredo governador e bradando pelos ideais libertários históricos das alterosas, também seguiram apoiando a aliança que derrotaria. Os conspiradores de sempre e sabiam que Tancredo Neves passava pelo Colégio Eleitoral, era símbolo de moderação e unidade, porém….. carregava a caneta de Vargas.
No seu discurso já como presidente eleito, Tancredo Neves fazia florescer o lastro histórico de que era portador: “Não vamos pagar a dívida externa com a fome do povo brasileiro!!!”, declarou sinalizando uma linha política que, sem dúvida, além de credenciá-lo como “O fio da História”, convocando os brasileiros para recuperar a soberania perdida no pântano da ditadura, indicava que outra política econômica estava sendo traçada. O discurso soava como os gritos de Tiradentes contra as derramas de antes e as da era moderna. O Brasil havia se transformado em exportador de capitais, as remessas ao exterior, que Vargas e depois Jango lutaram para impedir, tinham se multiplicado nos anos sombrios, o Brasil estivera avassalado ante a oligarquia financeira internacional.
O brado de Tiradentes na Casa Branca
Além deste discurso, Tancredo eternizou um outro gesto de soberania e destemor, qualidades que sempre o caracterizaram. Na viagem internacional já como presidente eleito, ante o presidente da república dos Estados Unidos, o lamentável Ronald Reagan, o espírito de Tiradentes novamente estufou no peito do mineiro: “Senhor presidente, o Brasil não tolerará nenhuma intervenção contra a Nicarágua e reconhece o legítimo direito daquele país de escolher o seu próprio caminho”. Segundo depoimento do correto jornalista José Augusto Ribeiro, assessor de imprensa de Tancredo, a frase contra o intervencionismo neo-colonialista soou como um raio no salão da Casa Branca. Ele próprio, Ribeiro, surpreendeu-se, pois Tancredo não havia comentado nada com ninguém. Mas, estava com a caneta de Vargas.
O 21 de abril de 1985 foi de lágrimas e de desencanto com aquela morte tão trágica e enigmática. Os milhões de brasileiros nas ruas, em várias capitais, pareciam indicar que o povo, este ente que raras vezes manifesta-se com tanta força, e que fora ludibriado em 1954, sem poder entrar em cena como protagonista, golpeado em 1964, novamente sem ter sido chamado a resistir ao golpe, queria agora expressar-se como corpo unido, um só corpo, quem sabe para extravasar sua dor e sua desconfiança. A dor por não poder fazer a experiência histórica com um timoneiro que jamais temia proclamar sua fé por Tiradentes, portador de compromisso inarredável com a construção de uma pátria soberana, e zelador de um respeito sagrado pelo povo e por sua história de luta. E a desconfiança por não poder esclarecer, nem naquele já longinqüo abril de 1985, nem hoje ainda , que tenebrosas transações podem ter operado, às sombras, para impedir a unidade de um povo sedento de justiça social com um mineiro que trazia, junto com a caneta de Vargas, uma história de gestos destemidos, soberanos e corajosos em defesa de uma verdadeira independência e de um novo país, um país que “não pague suas dívidas com a fome do povo”.
O inesquecível Barbosa Lima Sobrinho, que morreu centenário defendendo a Nação ameaçada, repetia que no Brasil há, em última instância, apenas dois partidos: o de Silvério dos Reis e o de Tiradentes. Tancredo filiou-se para sempre no Partido de Tiradentes.
* Beto Almeida é jornalista