Comissão da Verdade


Antonio Neto
30/06/2021

Assistida como a um BBB, CPI da Covid desempenha função que estava em falta: ser um fórum público de debate racional de ideias, furando bolhas de desinformação

 

Na semana passada, a imagem de um deputado federal chegando para depor a uma CPI no Senado Federal usando um colete à prova de balas disse muito do lodaçal em que o Brasil se meteu. Que país é este que temos hoje? Uma república de milicianos? “Como é que a gente deixou Bolsonaro ser eleito presidente?”, resumiu a atriz Leandra Leal em um programa de TV, e sua pergunta calou fundo na alma dos milhões de brasileiros que compartilham da sua indignação com a tragédia perpetrada pelo pior presidente de todos os tempos.

Mas, desde a instalação da CPI da Covid e as manifestações de rua cada vez maiores contra o genocida, voltamos a ter esperanças de acabar de vez com esse desgoverno desumano, incompetente e perverso. As revelações do deputado Luis Miranda e do seu irmão, o servidor Luis Ricardo Miranda, deixaram claro que, além de toda a loucura negacionista já desmascarada por diversos depoimentos, há um mar de lama de corrupção no Ministério da Saúde a ser investigado e punido.

A CPI está cumprindo o seu papel de trazer à tona a verdade dos fatos para que se possa processar os culpados. Mas, mais do que isso, ela está desempenhando uma função social essencial e que estava em falta no mundo de hoje: ser um fórum público de debate de ideias, mediado pela presença de especialistas, que expõem verdades de modo irrefutável. Bom, alguns até tentam rebater e continuar em sua realidade paralela, mas isso é um problema apenas para as suas biografias, que ficarão manchadas para sempre pela vergonha que estão passando em rede nacional.

Como profissional com origem no setor de tecnologia da informação, sou testemunha de todo o bem que a internet trouxe para o progresso da humanidade. Porém, é preciso reconhecer que a popularização das redes sociais trouxe junto no pacote também muitos males, como a proliferação de fake news e o consequente empoderamento de personagens do submundo das trevas que, antes, sem o reconhecimento dos seus pares, tinham seu poder de fogo restrito e viviam dentro dos seus bueiros, prejudicando apenas quem tinha o desprazer de estar ao alcance de sua ignorância e maldade. A grande arena onde se formava a opinião pública existia por meio da imprensa profissional, com seus erros e acertos, como toda atividade humana – mas com critérios técnicos e pessoas físicas e jurídicas que podiam ser processadas pelos excessos e mentiras.

Já nas redes sociais, a opinião do tio do pavê ou da tia do Zap parece valer tanto quanto à do doutor da USP. E, pior, por causa da campanha orquestrada para desacreditar a grande mídia, muitas pessoas simplesmente deixaram de receber notícias por meio da imprensa profissional e vivem, de fato, em um universo paralelo em que a cloroquina funciona para Covid e não há corrupção no governo Bolsonaro.

O fato é que a CPI obriga os marmanjos charlatões a sair do seu parquinho tecnológico de fake news e a lidar com a verdade. Para o público que sabe juntar lé com cré, fica patente o non-sense de tentar defender remédios comprovadamente ineficazes contra a Covid ou a proposta de reforma administrativa do governo, que se for aprovada vai tornar impossível que servidores como Luis Ricardo Miranda denunciem seus superiores. Também fica exposta a falácia de que só existe corrupção depois do pagamento, mesmo o governo tendo emitido nota de empenho (uma autorização para o gasto) de R$ 1,61 bilhão para a compra da Covaxin, para uma empresa que não estava no contrato, com sede em um paraíso fiscal.

Só para lembrar quem finge não saber, para o crime de corrupção passiva se consumar, não é preciso que tenha havido pagamento – o núcleo do tipo penal descrito no artigo 317 inclui “solicitar” e “aceitar promessa de tal vantagem”. E o crime de prevaricação (artigo 319) é: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Ou seja, uma autoridade pública que recebe uma denúncia e não toma providências, como manda a lei, por causa de conveniências políticas, como Bolsonaro parece ter feito, comete crime de prevaricação.

Enfim, a falta que faz essa arena pública de debate racional, com base em fatos científicos e leis, está sendo suprida pela CPI da Covid. Por causa dela, alguns personagens estão sendo obrigados a dar satisfação para a sociedade e não é mais possível se refugiar em bolhas de desinformação. O país está acompanhando o desenrolar da comissão como um BBB – só que, neste caso, o prêmio pode ser de todos os brasileiros, na forma de um país melhor e menos trágico.

Nos poucos meses desde que foi instalada, a CPI já produziu o resultado de ajudar a derreter a popularidade de Bolsonaro, como se vê nas ruas e nas pesquisas. No último Datafolha, realizado duas semanas após o início dos trabalhos, a aprovação do presidente já caiu de 30% em março para 24% em maio. Depois de toda a sujeira que a CPI está descortinando, além da morte de mais de 500 mil brasileiros – milhares dos quais poderiam ter sido salvos se houvesse vacinas a tempo, se houvesse campanhas pelo uso de máscaras e distanciamento social, se não houvesse propagandas enganosas de falsos tratamentos, se houvesse governo –, essa popularidade deve despencar ainda mais.

Nesta quarta, estarei junto com representantes de diversos partidos e movimentos sociais na entrega de um superpedido de impeachment para a Câmara dos Deputados, que reúne mais de 100 pedidos já feitos por opositores do presidente e também por ex-bolsonaristas arrependidos. Neste sábado, dia 3 de julho, voltaremos às ruas em centenas de cidades no Brasil e do mundo para exigir “Fora, Bolsonaro!”. Se o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira não ouvir a voz cada vez maior das ruas e não abrir o processo de impeachment, depois de tudo que já veio à tona na CPI, ele também se tornará cúmplice do genocídio e da corrupção.

 

Antonio Neto é presidente do Diretório Municipal do PDT de São Paulo, da CSB (Central dos Sindicatos Brasileiros) e do Sindpd (Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados e Tecnologia da Informação no Estado de São Paulo)