“Para o negro, pouco mudou com o fim da escravatura”. Essa afirmação é de Abdias do Nascimento, em entrevista concedida à Revista Acervo, em 2009, na qual ele conta um pouco das suas dificuldades enfrentadas e a luta diária por mais justiça e resgate da cultura negro africana por meio da política e da arte. Se estivesse vivo, Abdias completaria hoje, 14 de março, 107 anos de vida.
De família pobre, Abdias era filho e neto de escravas. Nascido 26 anos após a abolição da escravatura, ele se deparou com inúmeras barreiras enfrentadas por sua família. Como ele sempre frisava, naquela época, o negro não era mais propriedade do senhor do engenho, mas a falta de políticas públicas capazes de integrar e emancipar a população afrodescendente brasileira era um problema que ainda se reflete no dias de hoje.
De acordo com a quarta edição da plataforma Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2020, a população negra é maioria entre as pessoas pobres e extremamente pobres do País, bem como a que tem as maiores taxas de homicídio e a que ganha menos, se comparada com a população branca.
Em uma de suas últimas entrevistas, para a Revista Acervo, Abdias conta uma situação na qual ele, ainda menino, pela primeira vez compreendeu o que era injustiça e preconceito racial. O caso envolveu sua mãe, que arrancou dos braços de uma mulher branca um menino de rua que, na ocasião, estava apanhando dela.
“As palavras de minha mãe, a atitude dela, foram as minhas primeiras lições de solidariedade racial, a primeira lição de panafricanismo que recebi ainda menino”, contou o ativista.
Abdias também relembra, nessa mesma entrevista, um de seus primeiros contatos com o racismo na juventude e como superou o acontecido. O ativista foi preso na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, e expulso do Exército brasileiro por reagir ao preconceito sofrido por ele. Porém, o fato não foi motivo para parar seu trabalho, muito pelo contrário. Foi na prisão que ele pôde criar sua primeira peça teatral e, após sair, contribuiu para uma cultura brasileira inclusiva, criando o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro.
“Antes do TEN, os negros não pisavam no teatro Municipal a não ser para fazer faxina! Lá, resgatávamos, no Brasil, os valores da cultura negro africana, degradados e negados pela violência da cultura branco europeia, valorizando o negro através da educação, cultura e arte”, conta o pedetista.
Inicio da carreira política e representação no PDT
Sobre o início de sua atuação na política, Abdias conta na Revista Acervo que sempre teve uma dupla conotação, cultural e política. Para ele, as duas áreas são dimensões da mesma iniciativa, que é a defesa e promoção dos direitos e da cultura da população de origem africana.
“Eu escrevia no jornal “Quilombo” do TEN, editoriais sobre a necessidade de o negro atuar na política como candidato, e não mais apenas como cabo eleitoral dos outros”, afirma Abdias.
O ativista também conta como enfrentou o cenário político ao se aliar ao antigo PTB de Brizola e João Goulart. Com sua ativa participação, o compromisso com a população negra foi inserido na histórica Carta de Lisboa.
“Pela primeira vez me senti realmente identificado com a proposta de um partido político. O PTB de João Goulart e de Brizola tinha tudo a ver com minha orientação política, embora a questão racial ainda não ganhasse ressonância”, afirmou Nascimento.
“Ao reorganizar o antigo PTB, a Carta de Lisboa afirmava o compromisso do partido com a causa da população negra. Isto foi resultado de conversas com Brizola em Nova Iorque. No Brasil, já no período da anistia e da redemocratização, o PDT consolidaria esse compromisso como prioridade ao compreender e agir de acordo com a necessidade de incluir negros em seu secretariado de governo”, destacou Abdias.
Barreias no parlamento brasileiro
Ainda em sua entrevista para a Revista Acervo, Abdias relembra que, quando exerceu o mandato de deputado federal, em 1983, ele era o único negro assumido no Congresso Nacional e que dedicava o mandato à defesa dos Direitos Humanos e civis da população negra, o que constantemente causava ira e tentativas de barrarem sua palavra na Câmara Federal.
“Quando cheguei à Câmara como deputado pelo PDT, não me deixaram falar, queriam cortar a minha palavra, achavam que eu falava inverdades absurdas. Depois de anos passados, fazendo a minha pregação, juntavam-se outras vozes a minha e até recebia o aval dos senadores aos meus projetos de lei. A sociedade vem mudando, à medida que a gente bate, bate, bate na mesma tecla. É verdade que é assim aos pouquinhos, mas é um processo irreversível”.
Ao final dessa entrevista, o pedetista deixou um recado à população brasileira, onde reafirmou a importância e a necessidade de se dar ouvidos às questões raciais no País.
“O negro neste país está acordado, alerta, e vai continuar sua luta sempre. Isto é um processo irreversível! Espero que o Brasil tenha a sensatez de ouvir-lhe os gritos em vez de se fazer de surdo. O negro no Brasil é maioria, e democraticamente no futuro deve assumir a direção do País. É só uma questão de tempo e de aprimoramento das instituições democráticas”, finalizou o pedetista.