Raras vezes, na turbulenta história política do Ocidente, um corpo legislativo exerceu uma função tão importante como a que exerce hoje o parlamento brasileiro.
Momentos como esse, nos quais milhões de conterrâneos olham com tanta apreensão para as possíveis consequências trágicas dos desatinos que saem da boca do presidente da república, servem para reforçar, em muitos de nós, a fé na doutrina democrática.
Afinal, se a democracia tem seus defeitos, como a de possibilitar, em momentos de grande confusão nacional, a eleição de lideranças incompetentes, a sua maior virtude é oferecer, simultaneamente, os contrapesos necessários para neutralizar esse mesmo problema. E o contrapeso político e institucional mais importante a um poder executivo autoritário é um legislativo democrático e atuante!
Se o judiciário é obviamente o outro contrapeso fundamental aos riscos de abuso do poder executivo, o legislativo tem a virtude democrática de emergir do voto popular.
Não é por acaso que governos autoritários sentiram-se forçados, sempre, a fechar os parlamentos. Isso não significa, naturalmente, que os parlamentos sejam perfeitos. Longe disso, infelizmente. Houve inúmeros momentos em nossa história em que o parlamento brasileiro tomou decisões equivocadas.
Mas a Terra é redonda, e gira. Hoje o parlamento brasileiro é a maior garantia de que a nossa democracia seguirá firme.
O nosso país é tão grande que não é fácil ter consciência de sua magnitude, como alguém que caminhasse sobre o dorso de uma grande baleia branca sem se dar conta de que, sob seus pés, se encontra o maior animal do planeta.
Se antes da pandemia, já tinha ficado patente que o presidente Jair Bolsonaro tinha intenção de impor uma agenda delirantemente ideológica ao país, com seus projetos estapafúrdios de liberar armas a qualquer cidadão, de um lado, e autorizar que policiais as usem para matar sem consequências, de outro, depois dela tudo ganhou ares muito mais dramáticos.
Agora podemos afirmar, sem risco de exagero, que tem sido o parlamento o grande fiador da estabilidade social e democrática. Não fosse a decisão do parlamento, por exemplo, de ampliar a ajuda emergencial dos ridículos R$ 200 propostos pelo governo federal, para R$ 600 por pessoa, chegando até R$ 1.200 por família (pais ou mães solteiros podendo ter acesso ao benefício), o que teria acontecido em nossas periferias, que já contam, em tempos normais, com problemas gravíssimos de desemprego, violência e insegurança alimentar?
Recentemente, aprovamos a Lei Aldir Blanc, onde se prevê a extensão do auxílio emergencial a profissionais do setor cultural, subsídios a espaços culturais, novos financiamentos para editais de cultura e atividades de economia criativa e/ou solidária, além de apoio financeiro a produções audiovisuais que possam ser transmitidas via internet ou disponibilizadas via redes sociais.
Outra iniciativa do parlamento brasileiro foi a de aprovar recursos financeiros para estados e municípios, da ordem de dezenas de bilhões de reais, e sempre contra a vontade do governo, permitindo que governadores e prefeitos pudessem manter em dia o pagamento do funcionalismo e adotarem as medidas necessárias tanto para combater a pandemia como para estimular suas economias num momento tão difícil.
Visando proteger o emprego dos brasileiros nesses tempos de pandemia, os deputados também aprovaram projetos que ofereciam novas linhas de crédito a empresas nacionais, embora infelizmente as instituições financeiras – sob o silêncio cúmplice do Ministério da Economia – tenham liberado muito pouco desses recursos.
Essas ações – e foram tantas outras que seria cansativo listá-las todas aqui – mostram que o parlamento, além da função de conter o que o Executivo faz em excesso, como é o caso dos surtos autoritários do presidente, também procura compensar o que ele faz de menos, reagindo à criminosa inação do governo com projetos que ajudam o país a continuar se alimentando, produzindo, criando.
Apesar de estarmos vivendo – e muito por culpa da própria administração federal, que vai completar dois anos de mandato sem ter oferecido nenhum projeto estruturante para combater o desemprego, a informalidade, a pobreza, a desigualdade, a desindustrialização – a pior crise econômica dos últimos cem anos, o país ainda mantém uma aparente estabilidade, e isso acontece por causa da atuação exemplar do nosso parlamento.
Devemos nos manter humildes e alertas, porém. O parlamento ainda tem uma luta muito grande a travar nos próximos meses e anos. Não podemos nos dar ao luxo de repousar por um minuto, por um segundo que seja, enquanto a presidência da república estiver ocupada por uma figura com traços de personalidade – inclusive em
suas características mais caricatas – que nos lembram as mais perigosas lideranças fascistas da história.
Caberá ao parlamento continuar sendo o contrapeso democrático e popular a toda ação antidemocrática e antipopular do governo Bolsonaro. Apesar do preço altíssimo que o povo brasileiro já pagou pela incompetência genocida do Executivo, como se constata pelos quase 75 mil mortos pela Covid-19 (e que, em breve, serão 80, 90, 100 mil), o edifício democrático se mantém sólido.
Como liderança da Oposição, nosso papel é convencer parcelas cada vez maiores do parlamento, da opinião pública e da sociedade civil, que é possível e necessário construir um projeto alternativo ao neoliberalismo obsoleto e antinacional que, de uma maneira ou outra, tem sido a orientação econômica hegemônica de todos os governos desde a redemocratização, como se fosse esse o preço que tivéssemos que pagar pela própria democracia. O governo Bolsonaro representa a radicalização desse projeto, e os resultados já se mostram desastrosos.
Esta é, portanto, a função tríplice do parlamento brasileiro, em especial de sua oposição: conter os excessos do Executivo, oferecer projetos que aliviem os sofrimentos do povo, e ser um dos centros articuladores de uma alternativa política viável, capaz de coesionar as forças do trabalho e da produção, e de fazer esse país gigante voltar a crescer de maneira firme, justa e sustentável!
*André Figueiredo é deputado federal (PDT-CE) e Líder da Oposição na Câmara.