Ainda bem que o Brizola também era engenheiro. Como governador do Estado do Rio, foi visitar o Guandu (a grande estação de tratamento de água construída para a abastecer de água a cidade do Rio e seu entorno), propagandeado desde sua construção como a obra do século; de iniciativa de um governador do então Estado da Guanabara (hoje, Cidade do Rio de Janeiro), Carlos Lacerda – que antes se dedicava a fazer oposição a governos progressistas e reformistas, com papel decisivo em duas crises: a de agosto de 1954, cujo desfecho foi o suicídio de Getúlio Vargas, para preservara obra de seus dois governos e evitar uma guerra civil na qual morreriam muitos jovens brasileiros; e a de 1964, o golpe que derrubou o Presidente João Goulart e submeteu o Brasil a vinte anos de governo militar.
Na condição de engenheiro, Brizola verificou com facilidade que o Guandu – localizado junto às divisas de duas cidades do antigo Estado do Rio: Itaguaí e Nova Iguaçu – fora projetado e construído para somente abastecer os bairros mais pobres e a periferia do Rio e a Baixada Fluminense depois de abastecidos os bairros influentes como, por exemplo, os da Zona Sul e a Tijuca.
O que o engenheiro Brizola viu foi que as saídas para as regiões mais pobres ficavam em plano mais alto e só recebiam água depois das saídas para as regiões mais ricas e com o reservatório bem cheio. Quando o reservatório baixava de nível, os bairros populares ficavam sem água.
Esta verificação de um planejamento discriminatório e criminoso pelo governo Carlos Lacerda levou Brizola a um grande esforço para levar água corrente às regiões prejudicadas do Grande Rio. Pouco antes de deixar seu segundo governo, em 1994, para iniciar sua segunda campanha de candidato à Presidência da República, Brizola escreveu num de seus famosos tijolaços:
– Quando, no início de meu Governo, buscava juntamente com o então Secretário de Obras, o saudoso companheiro Bocayuva Cunha, soluções para levar água tratada para a Baixada e Zona Oeste, deparei-me com uma situação discriminatória na estrutura do sistema Guandu, que hoje relato pela primeira vez. A água só chegava aos níveis da adutora que se dirige à Baixada nos momentos de cheia do reservatório do sistema, que suporta um volume d’água de 75 milhões de litros. Assim mesmo, nos bairros daquelas regiões que já têm redes de distribuição, a água só chegava raramente e em pequenas quantidades.
– Buscamos, a partir daí, uma solução justa socialmente e viável do ponto de vista técnico. A alternativa era aumentar a quantidade de água tratada, ao mesmo tempo em que se deveria elevar a pressão na adutora da Baixada. Com o início das negociações para despoluição da Baía de Guanabara, obtivemos, junto ao governo japonês, o financiamento da construção da estação de tratamento de esgotos de Alegria, no Caju, obra na qual a Caixa Econômica Federal dispunha-se a alocar recursos. Com isto, a CEF concordou em reverter estas verbas para o projeto Guandu, que absorveu um total de US$ 110 milhões, divididos entre aquela instituição financeira e o Estado, através da Cedae.
Em março de 1994 Brizola podia anunciar:
– Inaugurei, na última sexta-feira, a ampliação do sistema de captação e da estação de tratamento de água do Guandu: uma obra de vital importância para o Rio de Janeiro, que vai permitir o envio de mais de 600 milhões de litros de água tratada para dezenas e dezenas de bairros populares da Baixada Fluminense e das zonas Oeste e Leopoldina, do Rio de Janeiro. Trata-se de um acréscimo que, sozinho, equivale a toda a água processada pelos sistemas de cidades como Recife ou Porto Alegre. Agora, com a ampliação, o Guandu é a segunda maior estação de captação e tratamento de água do mundo, só superada pela de Chicago, nos Estados Unidos. E, sobretudo, significa um ato de justiça para com as populações daquelas regiões, onde é captada a água que abastece o Rio de Janeiro e que não têm – ou têm precariamente – elas próprias garantido o fornecimento de água limpa.
Foi uma luta longa e dura, como diria Brizola neste tijolaço:
– Mesmo com todas as dificuldades e incertezas quanto à disponibilidade de recursos, a tempo e a hora, determinei ao Secretário Bocayuva que iniciasse o projeto, garantindo que, na impossibilidade de alocação de recursos diretos da Cedae, o próprio Tesouro Estadual cobriria as necessidades, tamanha era a significação das obras. E que significação! Já no dia de hoje, estamos reforçando o fornecimento de água para Nova Iguaçu, São João de Meriti, Caxias, Belford Roxo, Nilópolis, Queimados, Japeri, Engenheiro Pedreira e Austin, todos na Baixada Fluminense, beneficiando 1,2 milhão de pessoas. Na Zona Oeste, 400 mil moradores dos bairros de Bangu, Realengo, Padre Miguel, Campo Grande, Sepetiba, Santa Cruz, Pedra e Barra de Guaratiba, Inhoaíba e outras localidades vão sentir, na medida em que o sistema for progressivamente colocado em operação, a melhoria no abastecimento. Os bairros da Leopoldina – como Irajá, Penha, Ramos, Bonsucesso, Olaria, Vila Kosmos etc. – vão receber água para outras 400 mil pessoas. No total, são 2,2 milhões de habitantes do Grande Rio que terão assegurado o acesso ao mais importante fator de saúde e higiene: água limpa.
O resultado foi fantástico e registrado por Brizola:
– Para que isto fosse possível, estamos agregando uma quantidade de água tratada que, num único dia, seria capaz de inundar até a altura do 7º andar dos prédios da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, em toda a sua extensão. E mais: com este acréscimo, teremos água para abastecer os 1.240 quilômetros de rede de distribuição domiciliares que serão implantados com o programa de despoluição da Baía de Guanabara. As obras foram dimensionadas para permitir, com investimentos complementares, nos próximos anos, a duplicação total do Guandu: isto é, a adução de mais quase 3 milhões de litro de água por dia para o Grande Rio. Ao mesmo tempo, estamos concluindo a concorrência pública para a ampliação, em 40%, do sistema Imunana–Laranjal, permitindo o fornecimento diário de quase 200 milhões de litros de água para os municípios do outro lado da Baía – Niterói, São Gonçalo e Itaboraí –, além da Ilha de Paquetá.
Brizola temia que acontecesse com as obras do Guandu o mesmo que acontecia com outras duas prioridades de seu governo (e paixões dele):
– Durante quase três anos, conduzimos esta obra gigantesca quase em silêncio, sem grande divulgação. Temíamos que contra ela, como aconteceu com os Cieps e a Linha Vermelha, se levantassem as forças poderosas que discriminam o Rio de Janeiro e, sobretudo, no afã de atacar a mim, a meu governo e ao PDT, não vacilam em atingir e prejudicar os interesses e direitos essenciais do povo carioca e fluminense. Tenho a certeza de que agora, com sua entrada em operação, grande parte da opinião pública deve ter se surpreendido com a magnitude do projeto.
Contada a história, Brizola concluía o tijolaço olhando para o futuro:
– Este grande programa de abastecimento de água inspira-nos uma reflexão sobre nosso País. Está aí, no fornecimento de água limpa a toda a população, notadamente nos aglomerados urbanos, uma das chaves para os nossos graves problemas de saúde pública. Água limpa, alimentação condigna e programas de vacinação são as pedras de toque da melhoria das condições de saúde de nosso povo. Se todos os brasileiros tivessem acesso a estes direitos, estou convencido de que extirparíamos em 80% o quadro de doenças e endemias que nos assola por toda parte. O que ocorre, porém, é o contrário. Educação, saneamento público e os programas de natureza social são os primeiros a serem atingidos a cada surto de planos e pacotes econômicos. As elites brasileiras vivem com suas mentes mergulhadas em cortes, ajustes, taxas, e mil artimanhas para manter o sistema econômico de espoliação. Desenvolvimento sustentado – investimento social; enfim, progresso voltado para o interesse e a vida da população – só poderá ser obra de um governo independente, que rompa as cumplicidades e que coloque acima de tudo os reais interesses do povo brasileiro.
Um quarto de século depois, todas as televisões no Brasil mostram o dia inteiro a impossibilidade, em favelas e bairros pobres, não só do Rio como também em São Paulo (e certamente em muitas outras cidades brasileiras), a impossibilidade para milhares de pessoas de lavar as mãos com frequência com água e sabão, para se proteger do coronavírus e, obliquamente, proteger também de contágio os moradores dos bairros privilegiados, nos quais não falta água – nem sabão.
Se tivessem continuado o que Brizola começou, hoje estaríamos enfrentando o coronavírus com melhores expectativas, tanto para o povão das favelas como para os moradores dos bairros privilegiados pelo projeto original do Guandu.
*José Augusto Ribeiro é jornalista e escritor. Autor da trilogia “A Era Vargas”, o mais completo livro sobre a vida e obra do presidente Getúlio Vargas.