No Senado, último discurso de Darcy Ribeiro é um tributo ao Trabalhismo


FLB-AP
26/10/2017

“É um homem que, como Getúlio, tem sua carreira política marcada por essas duas dimensões: o amor do povo e o ódio das classes dirigentes”, disse o senador pedetista, Darcy Ribeiro, que hoje completaria 95 anos, no seu último discurso no plenário do Congresso Nacional. O ato, promovido no dia 5 de dezembro de 1996, ocorreu na sessão especial requerida pelo deputado Matheus Schmidt, líder do PDT na Câmara, em homenagem aos 20 anos da morte do presidente João Goulart.

Ao falar de Leonel Brizola, que estava presente, o pedetista, que na foto aparece ao lado de Mário Juruna, único índio a conquistar uma vaga de deputado federal na história, mostrou o valor do líder gaúcho. “Meu querido amigo Leonel Brizola, que eu quisera ver como presidente da República — tenho certeza de que ele, mais do que ninguém que conheça, seria capaz de passar o Brasil a limpo, a favor da felicidade do povo e da dignidade da Nação”, exaltava.

Sobre os jovens, projetava uma complicada realidade diante do panorama já existente no país. “Quem vai ganhar essa juventude que a ditadura castrou e que aí está desbundada? Isso me preocupa profundamente. Havia formas de concatenar a ação dos jovens para que eles fossem orgulhosos de ser brasileiros. E fossem quadros da nossa luta”, disse.

Confira o discurso na íntegra:

O SR. DARCY RIBEIRO (PDT-RJ) – “O Hino Nacional me dá ânsia de choro. Não sentia isso antes. Por quê? Os anos de exílio sem ouvi-lo? Não sei. Doença? O certo é que me comove mais do que devia. Dá vontade de pegar uma espada e sair pronto para brigar, mas me ponho a chorar”. (Palmas.)

“Exmo. Sr. Presidente do Senado da República, Senador José Sarney; meu querido amigo Leonel Brizola (Palmas), que eu quisera ver como Presidente da República — tenho certeza de que ele, mais do que ninguém que conheça, seria capaz de passar o Brasil a limpo, a favor da felicidade do povo e da dignidade da Nação; meu companheiro Almino Affonso (Palmas), queridos companheiros, queridas companheiras: vamos falar do Jango, do Presidente João Goulart, com quem tive um longo e intenso convívio, um convívio muito grato. O Jango era bom de conviver.

Lembro a V.Exªs. o que me vem agora à memória. Há 20 anos, eu corri muito para chegar a São Borja — e cheguei — para ver o Jango morto. Ele tinha sido proibido de entrar na sua pátria querida. Era o esquife dele que vinha. Tentei ficar perto, mas havia muitas pessoas do Brasil inteiro, sobretudo do Rio Grande, querendo colocar a mão no caixão ou tocar naquele homem extraordinário que se ia. Tive de me afastar para deixar que essas pessoas saudassem Jango e dele se despedissem. Sentei-me, então, num túmulo de mármore branco, de estilo comum, que parecia o sepulcro de uma família italiana. Fiquei sentado sobre o túmulo e assustei-me quando vi que era o de Getúlio. O retrato e o nome dele estavam lá. Fiquei muito emocionado: esse é o túmulo de Getúlio?

Mas, emocionou-me mais o fato de estarem aqueles dois homens plantados ali a 50 metros um do outro. Homens dali, de São Borja. Homens da tradição gaúcha mais profunda, homens da região missioneira tão sofrida, em que 300 mil índios foram assassinados ou vendidos para o Nordeste como escravos, o que criou naquela população missioneira algumas características que se difundiram no gaúcho.

Características que tinha Jango e Getúlio: a capacidade de convívio, ainda que assimétrico, com as classes subordinadas; de tomar o chimarrão juntos, de viver conversando, de amanhecer e passar a manhã juntos, conversando. Vejo em Getúlio e, sobretudo, em Jango uma capacidade extraordinária de falar com operário, com o lavrador. Creio que essa herança vem de lá. Mineiros e paulistas, que eu conheço tão bem, não têm essa característica, essa capacidade de intimidade assimétrica.

Mas intimidade com povo, capacidade de estar ao lado dele, não querendo se confundir com o povo, mas como um companheiro maior, o irmão mais velho que ali estava. Creio que essa é uma das heranças gaúchas bonitas, herança que era característica desses dois homens.

Jango se fez sucessor de Getúlio por méritos próprios. Era um jovem estancieiro muito rico; engordava 20 mil cabeças de gado por ano; podia continuar na sua vida venturosa e bem-sucedida, mas o convívio com Getúlio o foi chamando para outras tarefas, uma tarefa que era o Brasil, que era o trabalhismo, que era os trabalhadores. O convívio quase diário com seu vizinho, que era o velho Getúlio, o acompanhamento de Getúlio na campanha eleitoral, levou Getúlio, eleito Presidente, a fazê-lo seu Ministro do Trabalho. Ou seja, Getúlio dava a Jango a sua bandeira maior, o trabalhismo, que ele agarrou e levantou com dignidade, com honestidade a vida inteira.

A reação foi muito grande contra Jango. Ele combinou com Getúlio dobrar o salário mínimo, que desde o Governo Dutra não tinha se alterado. Isso provocou raiva muito grande, que não devia ter provocado. Alguns coronéis se irritavam, como se ofendesse a eles o fato de um operário ganhar mais. Jango nessa época ganhou uma grande bandeira de luta, mas ganhou também uma odiosidade feroz, terrível, das velhas classes dominantes.

É um homem que, como Getúlio, tem sua carreira política marcada por essas duas dimensões: o amor do povo e o ódio das classes dirigentes. Continuou convivendo com Getúlio, mas foi retirado do Ministério. É curioso verificar que nesse momento nascem dois homens: Golbery, autor do manifesto contra Jango com relação ao salário mínimo, e Jango, na posição oposta. Homens que teriam um papel muito profundo na história brasileira posterior. Jango herdava de Getúlio; tinha aprendido com Getúlio e tinha um extraordinário apreço pelas grandes tarefas do Getúlio. A tarefa de disciplinar as Forças Armadas, colocá-las nos quartéis, fazê-las obedecer ao poder civil e acabar com a anarquia do período tenentista.

Outra tarefa, polêmica, mas de importância inexcedível, que tem de ser compreendida para se compreender o Brasil, foi dar ordem, ajudar a estruturar o movimento operário, o movimento trabalhista brasileiro. Foi uma batalha, porque a liderança do movimento trabalhista estava sendo disputado por comunistas e por anarquistas, muito generosos de coração, mas que não tinham o que dar, e por Getúlio, que dá ao operariado um projeto próprio para lutar por suas próprias causas. Pressionado pelo próprio movimento operário, ele é levado a dar grandes saltos, saltos extraordinários na história brasileira.

Um dos saltos, que atualmente está sendo contestado criminosamente, pois é a maior invenção social brasileira, é o Imposto Sindical, que agora se chama contribuição sindical. Vários partidos desta Casa não se opõem a que os patrões recebam contribuição sindical para manter o SESI, o SENAC e as políticas deles, mas se opõem a que o povo operário tenha a sua contribuição sindical (Palmas). A contribuição sindical é a maior invenção social brasileira. Ela está na base de um sindicalismo frondoso que floresceu aqui, um dos maiores do mundo, porque cada sindicato que se organizava encontrava um modo de ter uma ajuda, uma verba tirada de todos os operários, correspondente a um dia de salário, dividido em doze prestações. Nem o próprio operário sentia, porque era descontado pelo patrão na folha de salário e entregue ao Governo — uma parte ficava com o Ministério da Educação.

Essa invenção não tem similar, mas alguns doidos alucinados que querem acabar com ela, querem a contribuição voluntária. Pode ser que os sindicatos dos metalúrgicos — o que eu duvido — consigam se organizar com a contribuição voluntária, mas 99% dos sindicatos não se organizarão, desaparecerão. Ou seja, um dos maiores movimentos sindicais do mundo, que envolve milhões de trabalhadores, que são defendidos sejam ou não membros do sindicato, isso tudo pode ruir pelo sectarismo, tipo de pendor udenista antioperário, antitrabalhador.

Outro feito fundamental de Getúlio, de que Jango e nós somos herdeiros, é a unicidade sindical. A unicidade sindical dá possibilidade de a classe operária ter atuação política, de estar presente no quadro nacional. O que pretendem hoje alguns partidos, inclusive alguns partidos chamados de esquerda, como o PT, que acaba de fazer essa proposição, é extinguir a unicidade sindical para adotar o sistema norte-americano, de um sindicato para cada empresa, o que acaba com o sindicalismo, o que acaba com o movimento operário. É uma coisa criminosa, que se deve à inspiração estrangeira, o pluralismo sindical dos financiadores do movimento sindical no mundo, os alemães, os franceses, os norte-americanos. E adotar isso no País é como se jogar fora o nosso passado e adotar o passado norte-americano, o passado inglês. Outra grande conquista foi a estabilidade no emprego, que nesses dias acaba de ser ameaçada — a Câmara liberou o patrão de obrigações para com os seus trabalhadores.

Aquilo que nós conseguimos está dentro da linha do pensamento japonês, por um paralelismo, por uma coincidência. A nossa concepção e a concepção de Getúlio é que uma empresa se faça com o capital, que tem de ser respeitado e lucrativo, e com os trabalhadores que a constroem. Eles têm parte daquela empresa; quando o trabalhador é despedido, ele não pode ser simplesmente descartado; ele tem de ser remunerado por isso. Permitir o absurdo de que o patrão assine a carteira sem obrigações é um ato criminoso.

Falam de Jango, mas Jango nasce herdeiro dessa posição e de outras posições de Getúlio e tenta levá-las adiante. Leva adiante, sobretudo, aquilo que constitui o documento mais importante, que é a Carta-Testamento de Getúlio, que deu a sua vida no momento em que a direita ganhar o poder; mas Getúlio o evitou, estourando seu coração com uma bala, aos 72 anos. Se não o fizesse — era a única saída —, ele seria enxotado do Catete, para dar o poder aos golpistas, aos udenistas, aos lacerdistas e a outros.

O suicídio de Getúlio Vargas foi um ato de extrema sabedoria. É o que vai permitir que JK — esse belo Presidente que nós tivemos, otimista, trabalhador, ousado — chegasse ao poder. Ele foi ao poder devido àquele tiro que Getúlio deu no coração. Há mil coisas mais a lembrar aqui. O Jango, com a Carta-Testamento, herda sobretudo a percepção de que a causa principal do atraso brasileiro era cruzeiro dar rendimento em dólares. Quando uma empresa põe aqui 10 mil dólares e cresce, foi porque teve êxito econômico? É porque apelou para o sistema bancário brasileiro. Todo o capital que ela passou a ter passa também a gerar dólares. Isso cria um desequilíbrio na economia nacional, coloca em posições antagônicas o capital nacional e o capital estrangeiro, obriga os empresários nacionais a ser coniventes com o capital estrangeiro. Isso é algo que se fixou em Jango.

Outra coisa que também se fixou em Jango — eu passei muitos dias conversando com ele sobre isso — era a noção de que a fórmula da revolução brasileira, de que o caminho brasileiro da revolução social era levar adiante a Revolução de 30. Àquelas conquistas acrescentar outras, sobretudo a reforma agrária. Era a convicção de que, fazendo a reforma agrária, o País seria reordenado, passaria a pertencer às multidões de brasileiros. O que eu classifico hoje como o mais importante momento social da história brasileira é o movimento dos sem-terra, que agora enfrenta o poder, exigindo um pedacinho de terra para plantar mandioca, milho, para criar galinha e cabra. Isso seria feito como? Tomando as terras de metade do Brasil que estão mal possuídas e não usadas, o que é um supremo despautério.

O Presidente da República acaba de dar um passo positivo impondo o que deveria ter ocorrido há 20 anos: um imposto para propriedades com mais de 80 hectares e improdutivas. Mas é preciso mais, porque esse decreto do Presidente, para ser colocado em execução e ser aceito pela Justiça levará anos e anos. E aqui vem uma questão séria: o movimento dos sem-terra vem por um lado e, por outro, o sistema econômico, destruindo os empregos. Vivemos uma quadra tremenda de desemprego, em que o próprio Governo privatiza empresas, estimulando a demissão ou colocando para fora 30%, pelo menos, dos seus trabalhadores.

Se amanhã privatizarem a Vale — os funcionários precisam saber disso —, 30% dos seus funcionários irão embora no outro dia. Essa situação de hostilidade com a força de trabalho, essas medidas coercitivas só podem apontar para uma situação dramática. Um povo não vai à revolução, à luta e à liberdade porque é mais miserável e pode morrer de fome. E é o que está ocorrendo. Por que a população brasileira não cresceu como deveria? Tinha de crescer para 160 milhões de brasileiros no último censo, mas faltaram 15 milhões. Esses 15 milhões não vieram por quê? Por fome, desemprego. Nunca tivemos uma fase de tanta violência, de tanta menina de 9, 10 anos prostituída. Essas meninas não se prostituem por volição, por vocação, por um pendor à prostituição. É casa sem comida, é casa abandonada e destruída.

Neste momento a única oferta que há de emprego para milhões de brasileiros é a do movimento dos sem-terra. Precisamos começar a distribuir a terra em grandes quantidades. Parcelas de 20, 30 hectares para quem queira nelas viver e trabalhar. Qual a alternativa que o Governo oferece para empregar essa multidão de milhões de desempregados e lançados à marginalidade e à violência? A única oferta que se faz, hoje, é a do movimento dos sem-terra.

Já falei muito. Poderia falar horas, tanto estou ligado à história de Jango. Deixem-me, apenas, recordar o que sucedeu em l964. A idéia que eu e Jango tínhamos era de que seria perfeitamente possível enfrentar o latifúndio e a direita latifundiária. O projeto de lei para isso eu tinha entregue ao Congresso Nacional, acompanhado de mensagem presidencial, propondo as medidas da reforma agrária, o que era factível de ser aprovado. Mas o que não era factível, o que nos tombou, foi a aliança da direita com os norte-americanos obcecados com a Guerra Fria.

Havia dois inimigos para os norte-americanos na Guerra Fria: a Rússia, claro; mas os inimigos locais eram Cuba, que ainda hoje os leva ao desespero, e o Brasil, pois temiam que a fome no Nordeste, a fome no Brasil, levasse o País a tomar um caminho desses. Jango não estava empurrando o País para esse caminho, para dar soluções, para equacionar o problema das terras.

O Brasil seria outro hoje se o projeto de reforma agrária que apresentamos ao Congresso a 15 de março tivesse sido aprovado. O golpe, então, se articulou como um golpe estrangeiro, financiado pelos norte-americanos e por outras potências, subornando generais, subornando políticos, todos sabendo dos escândalos, nesta Casa, do IBAD, da quantidade de dinheiro que foi posta na mão de Deputados e Senadores que aceitavam ser coniventes com a política deles, que era manter o Brasil tal qual é, porque era lucrativo para eles, era bom para eles, indiferentes à sorte do povo

Jango realizou grandes feitos. Vi crescerem projetos ao seu lado. Vi-o empurrar os Parlamentares que estavam lutando pelo Estatuto do Trabalhador Rural; vi-o levar adiante e criar a ELETROBRAS, que agora querem destruir. Na ELETROBRAS, conseguimos um mecanismo legítimo para aumentar as tarifas de eletricidade, para que o excedente fosse aplicado em construção de novas hidrelétricas. E construímos. E duplicamos, e triplicamos e decuplicamos nossa capacidade. E agora vai-se dar esse instrumento às empresas que comprarem, o direito de aumentar as taxas para fazerem hidrelétricas? Elas nem querem fazer hidrelétricas. Serão encargos do Governo, que tirará os recursos de onde, se a fonte secou?

Outros feitos foram o décimo terceiro salário, cuja tramitação teve todo o seu apoio; o controle do capital estrangeiro, cujo projeto chegou a ser aprovado na Câmara e no Senado; e a lei de remessa e lucros que o Jango regulamentou com a assessoria de Carvalho Pinto.

Quero terminar essa minha fala dizendo que a Jango devemos uma outra coisa muito bonita, que a meu coração fala especialmente: aquele senso de liberdade, de democracia e de criatividade cultural. É naquele período de Jango que surge um movimento poderoso que se estende a 1968: o movimento da bossa nova, o movimento do cinema novo, o movimento das canções de protesto, o movimento do teatro de opinião, movimentos que empolgavam toda a juventude, ganhando-a para si mesmo e para o País. Isso é o que falta hoje.

Quem vai ganhar essa juventude que a ditadura castrou e que aí está desbundada? (Palmas.) Isso me preocupa profundamente. Havia formas de concatenar a ação dos jovens para que eles fossem orgulhosos de ser brasileiros. E fossem quadros da nossa luta. Em 1968, na luta por manter aquele espírito, eles ofereceram os corações e os fígados às balas. Às dezenas foram mortos e torturados.

A beleza do movimento cultural é alguma coisa que devemos ao Governo de Jango, conciliador, persuasório, incapaz de violência. Acho mesmo, às vezes, que ele deveria ter tido um tom de violência um pouco maior, porque não há crime maior do que perder o poder. Mas não era da natureza de Jango. A formação dele não contribuía, de forma nenhuma, para uma guerra fratricida em que poderiam morrer milhões de brasileiros. Estamos aqui para recordar e saudar a memória desse homem por todos os títulos honrado e para que as pessoas se lembrem de que há outra versão, para a qual cada um de nós tem de contribuir.

Não é a versão de vencedor, que descreve aquele período como o período do Jango, que eles quiseram enfrentar da forma que fosse, sem nada a ver, de um governo que tinha conseguido constituir um partido revolucionário. Ora, a crença de Jango era a de que ele iria fazer o Partido Trabalhista Brasileiro igual ao inglês; que ele iria concorrer nas eleições e ganhar.

De fato, ele triplicou o número de Deputados trabalhistas. E mais, muito mais do que isso: Jango chamou ao Partido Trabalhista gente como Almino Affonso, que vinha de outras fontes: São Thiago Dantas, Hermes Lima e tanta gente mais. Introduziu na esquerda brasileira inclusive o eminente Presidente do Senado Federal, José Sarney, que naquele momento estava também na nossa luta. O que se quebrou foi aquela postura aberta, persuasória, de transformar o Brasil pelo consentimento das classes dominantes, em vista de que não dava prejuízo a ninguém, senão a quem não merecia atenção, que eram os latifundiários absenteístas.

Meus senhores, um dos meus orgulhos é o de ter sido o Chefe da Casa Civil do Presidente João Goulart”. (Palmas.)