Carta-testamento de Getúlio Vargas: 63 anos de um marco nacional

Foto: Jean Manzon

FLB-AP/Bruno Ribeiro
24/08/2017

“A carta-testamento é um documento digno de ser lido, porque ele é generoso; ele é um texto humano; muito forte”, exaltava Leonel Brizola, durante a disputa da eleição para prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, em 2000. O discurso abordava a importância do documento deixado pelo ex-presidente da República, Getúlio Vargas, antes do suicídio, que ocorreu em 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, com duas versões: uma manuscrita e outra datilografada. Representativo e impactante, esse posicionamento sempre foi ratificado e ecoado por trabalhistas em cada parte do país.

Ao contextualizar o indicativo da carta, Brizola mostrava o inconsequente ataque que o trabalhista sofria no período. “Havia um ambiente já de golpe de estado, por causa da Petrobras, dos conflitos, tudo isso aí. Ele sentiu. E não quis ser humilhado. Ele ia ser humilhado. Ia ser derrubado. Pressão americana muito grande; cresce no estrangeiro, em outros países. E ele se suicidou e deixou aquela carta.”

“O dia 24 de agosto foi um dia que vocês não têm uma ideia do que foi. O povo, chocado com a morte do presidente, porque aquilo vinha de uma campanha, de uma pressão de campanha terrível, que ele, naquela manhã deu fim à sua vida. E aquilo veio”, explicou, ao completar: “Ele entregou a carta-testamento para João Goulart e mandou que ele saísse daqui, porque ele achava que eles iam destruir a carta-testamento. Mas houve ação de muitos companheiros naquela hora, e fizeram a Rádio Nacional ler a Carta-testamento. Bom, foi um estouro.”

Segundo o líder pedetista, a divulgação da morte potencializou a reação da população. “Vocês sabem que o povo saiu em fúria pelas ruas, por toda a parte, quebrando tudo. Compreendeu? Quebrando tudo. Quebraram os jornais inimigos, os jornais de Chateaubriand; queimaram consulados americanos; o que era firma americana, quebraram tudo, incendiaram. O próprio Exército só depois, mais tarde (quando amainou um pouco a situação) é que saiu nas ruas.”

O ex-senador e antropólogo, Darcy Ribeiro, ratificava que Getúlio foi o maior dos estadistas brasileiros. “Foi também o mais amado pelo povo e o mais detestado pelas elites. Tinha de ser assim. Getúlio obrigou nosso empresariado urbano de descendentes de senhores de escravos a reconhecer os direitos dos trabalhadores. Os politicões tradicionais, coniventes, senão autores da velha ordem, banidos por ele do cenário político, nunca o perdoaram”, indicou.

Para ele, Getúlio governou o Brasil durante 15 anos sob a legitimação revolucionária, foi deposto, retornou, pelo voto popular, para mais cinco anos de governo. “Enfrentou os poderosos testas-de-ferro das empresas estrangeiras, que se opunham à criação da Petrobras e da Eletrobrás, e os venceu pelo suicídio, deixando uma carta-testamento, que é o mais alto e mais nobre documento político da história do Brasil”, acrescentou, ao considerar o documento essencial na história brasileira contemporânea.

Darcy relata ainda que o efeito do suicídio de Getúlio foi uma revirada completa. Segundo ele, a opinião pública, antes anestesiada pela campanha da imprensa, percebeu que se tratava de um golpe contra os interesses nacionais e populares. “Era a direita que estava assumindo o poder e que Getúlio fora vítima de uma vasta conspiração. Os testas-de-ferro das empresas estrangeiras e o partido direitista, que esperavam apossar-se do poder, entraram em pavor e refluíram. As forças armadas redefiniram sua posição, o que ensejou condições para a eleição de Juscelino Kubitscheck”, ponderou.

No relato do enterro, uma passagem emocionante. “O translado do corpo de Getúlio, do Palácio do Catete até o Aeroporto Santos Dumont foi a maior, a mais chorosa e mais dramática manifestação pública que se viu no Brasil. Pode-se avaliar bem o pasmo e a revolta do povo brasileiro ante esta série de acontecimentos trágicos, que induziram seu líder maior ao suicídio como forma extrema de reverter a sequência política que daria fatalmente o poder à direita.

Era Vargas

Para o ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-deputado federal, Alceu Collares, a trajetória de Vargas mostrava seu comprometimento com o povo. “Getúlio Vargas, em 1930, chegou ao poder na crista de uma revolução, com a oligarquia. Neiva Moreira sabe disso: Getúlio chegou com a oligarquia, com as elites. Se tivesse se mantido fiel àquelas elites, não teria apeado do poder. É que, chegando ao poder, marchou de forma resoluta, corajosa e forte, porque era um socialista”, ressaltou.

“Ninguém até hoje fez 10% do que Getúlio fez. Não foram apenas a industrialização e a introdução da modernização da agricultura no nosso País, que começou com o café, em São Paulo. Foi ele quem fez os grandes investimentos. Quem fez a maior quantidade de estradas, de portos, de aeroportos? Quem fez o BNDES, a Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a PETROBRAS, a ELETROBRÁS?”, completou, em um discurso vibrante na Câmara dos Deputados, em 2005.

Getulista, Brizola falava, com orgulho, do conterrâneo gaúcho. “Hoje, as estatísticas mostram que foram os anos que o Brasil mais progrediu, mais avançou; e que o produto econômico mais cresceu foram naqueles anos do presidente Vargas. Aí nasceu a Petrobras. Aí começaram os primeiros passos de outras grandes iniciativas. Morre o presidente Vargas, em 54, e o país viveu um momento difícil”, comentou.

Já Darcy relembrava que os intelectuais esquerdistas e os comunistas não se consolavam de terem perdido para Getúlio a admiração e o apoio da classe operária. “Com eles, o estamento gerencial das multinacionais. Getúlio foi o líder inconteste da Revolução de 1930. Tendo exercido antes importantes cargos, Getúlio pôde se pôr à frente do punhado de jovens gaúchos que, aliados a jovens oficiais do Exército, os tenentistas, desencadearam a Revolução de Trinta. A única que tivemos digna desse nome, pela profunda transformação social modernizadora que operou sobre o Brasil”, disse.

Leia abaixo a íntegra da Carta-testamento de Getúlio Vargas:

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente. Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.

 

Leia também o artigo “O peito de Vargas ainda sangra”.

 

Confira abaixo as imagens da carta-testamento nas versões manuscrita e datilografada.

Carta-testamento – manuscrita