Se Lula fosse pelo menos dez anos mais velho, poderia pensar que está acontecendo com ele o que aconteceu com JK, nosso Presidente mais querido, depois do golpe de 1964: não basta que o conduzam coercitivamente, no caso um eufemismo para uma forma de prisão que não ousa dizer seu nome. É preciso humilhá-lo, como alguns oficiais mais exaltados fizeram com Juscelino. Temendo as consequências de prendê-lo e até de conduzi-lo coercitivamente, submeteram-no a uma série de interrogatórios tolos e ao mesmo tempo boçais, um deles pelo menos no famoso quartel da Rua Barão de Mesquita, no Rio, onde funcionava o centro de tortura do Doi-Codi. Num desses interrogatórios, sabe-se que o jovem e árdego interrogador fez uma pergunta sobre o registro civil de Juscelino:
– Esse K de seu sobrenome fica na frente ou atrás?
Era uma bravata infanto-juvenil, o oficial deve ter achado engraçadíssima sua piada e com certeza não percebeu o quanto ela comprometia sua farda, a mesma farda ensanguentada que vestiam antecessores seus ao morrerem pelo Brasil nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.
Lula, segundo nos informaram, foi conduzido coercitivamente, sem ter sido previamente intimado a depor, pela suspeita de que não obedeceria à intimação, caso a recebesse. A suspeita resultava do fato de que, embora tivesse atendido a todas as intimações anteriores da Polícia Federal, ele se recusara a atender a uma intimação do Ministério Público estadual de São Paulo e entrara com uma petição ao Supremo Tribunal Federal para que este decidisse se o caso era estadual, de São Paulo, ou federal, da Lava Jato. É inevitável a impressão de que Lula foi submetido à condução coercitiva como castigo pelo atrevimento de perguntar quem podia interrogá-lo.
Em seguida alguém ou alguns do Ministério Público de São Paulo apresentou denúncia contra Lula, com pedido de prisão preventiva, a uma juíza criminal que preferiu mandar os pedidos ao juiz Sérgio Moro, da Lava Jato. Uma juíza, portanto, decidiu que o Ministério Público de São Paulo não tinha direito de intimar Lula nesse caso.
Lula, logo depois, foi convidado a integrar o governo, como ministro – e resistiu muito. Afinal aceitou a nomeação e sua posse foi proibida por um juiz que não se declarou suspeito, embora tivesse participado de pelo menos uma das manifestações contra Dilma e Lula em Brasília e usasse as redes sociais para piadas contundentes contra Lula. Essa proibição foi revogada pelo presidente do Tribunal Regional Federal de Brasília, mas outras ações chegaram ao Supremo e o relator, Ministro Gilmar Mendes, confirmou a proibição da posse e determinou que as investigações sobre Lula voltem ao juiz Sérgio Moro.
Nessa escalada, o próximo passo pode ser a prisão preventiva de Lula, embora ele ainda não tenha sido nem denunciado e seja apenas investigado. Pensando, porém, no que pareceria impensável, talvez o melhor para Lula seja mesmo a prisão – o que o levaria, se ele fosse mais velho, a considerar o caso de Gandhi.
A melhor coisa que os colonizadores fizeram por Gandhi e pela independência da Índia foi prendê-lo várias vezes e criar situações a que ele respondia com suas greves de fome. Lula, que é sabidamente guloso, talvez não chegue a tanto, mas prisão ele já conhece, dos tempos da ditadura, quando lutava contra ela, o que não aconteceu com tantos dos que hoje clamam contra ele.
Mas Lula tornou-se um corrupto, um ladrão – dizem os acusadores – e seu passado não justifica a impunidade. Então basta condená-lo, e não é só o juiz Sérgio Moro que tem coragem para isso. O Supremo também tem: como disse o Procurador Geral Rodrigo Janot, o foro privilegiado não garante a impunidade de ninguém.
Neste dias de tormenta, pelo menos dois ministros do Supremo, Marco Aurélio Melo e Carmem Lúcia – já disseram de público, em entrevistas à TV, que a condução coercitiva, que desencadeou toda essa confusão assustadora, só deve ser determinada quando a pessoa intimada não comparecer ou recusar-se a comparecer para depor. Lula não foi sequer intimado. Depois disso, atormentado como tem sido, Lula disse em telefonemas uma porção de coisas que não devia dizer e ofendeu até o Supremo. Que o condenem por essas manifestações às penas mais duras.
Mas o país, como fica, varrido por essa tormenta? Era necessário vivermos tudo isso, esse vendaval de paixões e demência? Ou, sem os protagonistas perceberem, esse espetáculo de grand guignol tem a conduzi-lo forças ainda invisíveis, para as quais, em matéria de Brasil, vale aquela palavra de ordem do quanto pior, melhor?