A crise aérea e o superávit primário (I)


por  Gustavo A. G. dos Santos    
 
A longa crise aérea que o país vive é conseqüência do contingenciamento de gastos em infra-estrutura aeroportuária na última década e meia, frente a uma demanda crescente por transporte aéreo. Nesse sentido, em alguma instância, o triste acidente ou ao menos o grau de gravidade do mesmo parecem ser resultado dessa profunda escassez de investimentos públicos. Essa falta de investimentos decorre de abusivas metas de redução de dispêndios governamentais, cristalizadas com a meta de superávit primário.
 
A deficiência de investimentos públicos em infra-estrutura é evidente. Há muito já deveriam ter deslocado as maiores aeronaves para Cumbica e construído a terceira e a quarta pista nesse aeroporto. Se já tivesse sido construído o trem expresso para Cumbica, essa opção seria ainda mais óbvia. A malha de metrô de São Paulo é ínfima para o porte da sua região metropolitana. O trânsito é péssimo. Assim, todos querem pousar o mais próximo possível do centro da cidade.
 
Poder-se-ia ainda já ter sido construído um trem bala entre Rio e São Paulo. Em poucas regiões do mundo tal investimento é tão viável, devido ao imenso potencial de passageiros por quilometro percorrido. Isso reduziria a sobrecarga sobre os aeroportos de toda região Sudeste do Brasil, em particular de Congonhas. Além de ser a opção ambientalmente e economicamente mais racional. Mas tudo isso depende de orçamento público.
 
Se o governo não queria fazer investimentos pesados, ao menos deveria ter feito uma manutenção permanente para garantir a qualidade e a segurança dos serviços aeroportuários. Assim não chegaríamos ao nível de deterioração da pista que levou à aparentemente apressada reforma atual. Como isso não foi feito, ao menos a pista auxiliar de Congonhas deveria ter sido previamente reformada sob os melhores padrões internacionais, para que pudesse ser utilizada em todos os dias de chuva, enquanto se esperava que fosse possível fazer os sistemas de anti-aquaplanagem na pista principal. Mas a crise aérea aumentava muito pressão das companhias e indiretamente da sociedade para que a pista fosse liberada logo. Se o governo tivesse investido mais no sistema de controle de vôos e na infra-estrutura aeroportuária, não haveria crise aérea.
 
Depois do acidente poucos discordariam que esses investimentos deveriam ter sido feitos. Entretanto, os “sábios” economistas da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) há anos se esforçam para apertar ao máximo o torniquete que sufoca os investimentos públicos. Todos esses investimentos são cogitados há muito tempo. Mas a meta de superávit primário era e continua sendo mais importante do que vidas humanas. Não estamos exagerando. É exatamente isso.
 
Todas as rodovias que ligam as principais capitais brasileiras já deveriam ter sido duplicadas há muito tempo. A redução de acidentes, onde o Brasil é campeão, seria imensa. Mas esses investimentos continuam fora de cogitação, apesar do fluxo de veículos já justificá-los segundo padrões internacionais, há décadas.
 
Quando novos investimentos em infra-estrutura chegam às mãos da STN, o que fazem é repetir o célebre mas falso dilema imposto pelo ex-ministro Pedro Malan sobre o congresso. Quando os parlamentares tentavam convencê-lo sobre a urgência e relevância de certos investimentos públicos, ele dizia algo como: “Vocês dizem que esse investimento é importante, então me mostrem onde devo cortar gastos para que possa fazer esse investimento?”. Esse é o falso dilema do superávit primário.
 
Por essa perspectiva, o investimento público não é visto como uma fonte de benefícios para sociedade. Ele é visto como um desperdício de recursos. É incrível, mas é verdade. Se os investimentos públicos fossem considerados como uma ação que gera retorno econômico ou social, a pergunta do ex-ministro seria: “esse investimento é capaz de gerar retorno maior do que seu custo?”
 
Essa é a pergunta feita pelos ministros da fazenda de outros países. É também a pergunta feita por qualquer investidor privado. Se um investimento público ou privado gera um retorno que cobre seus custos ele será sempre factível, pois, se o investidor não tem o dinheiro necessário, poderá sempre financiá-lo. É simples. Se um investimento paga os custos de seu financiamento, ele é viável.
 
Essa é uma verdade especialmente válida para o governo federal, pois ele tem um poder para se financiar infinitamente maior do que qualquer empresa do setor privado. E mais, um investimento público, mesmo se gera pouco lucro em si, gera invariavelmente muito retorno em impostos. Esses retornos em impostos complementam o retorno financeiro direto. Eles permitem certos investimentos públicos sejam autofinanciáveis quando possuem grandes retornos sociais e pequenos retornos financeiros. Por isso, o governo pode fazer tranqüilamente muitos investimentos que são fundamentais para a coletividade, mas que o setor privado não quer assumir. Em razão disso, o governo pode construir estradas importantes sem que seja prejudicada sua capacidade financeira. De fato, o setor privado jamais constrói estradas sem subsídios. Em linguagem de economista, diz-se que as estradas possuem externalidades socialmente positivas que o investidor privado não pode se apropriar lucrativamente. Mas a coletividade pode. Portanto, o poder público assume a obra.
 
Essa é a grande verdade encoberta pela meta de superávit primário e pelas  estranhas idiossincrasias da nova contabilidade pública. É difícil entender a racionalidade por detrás da estranha diferença entre a contabilidade pública e a contabilidade privada. Não há razão que explique porque um mesmo investimento rentável é contabilizado como investimento apenas porque o número de identidade da empresa (CNPJ) da empresa é privado e como gasto corrente se o CNPJ é público.
 
Superávit primário é quando a receita menos a despesa operacional é maior do que os investimentos. As grandes empresas privadas estão quase sempre em déficit primário, segundo os critérios da contabilidade pública. Mas isso nunca é visto como um problema. Pelo contrário, significa que elas estão investindo, tomando financiamento e crescendo. O mesmo deveria ser interpretado com relação ao governo. A contabilidade deveria ser a mesma. Se o governo está investindo muito em infra-estrutura, deveria ser considerado uma iniciativa positiva. Mas no Brasil hoje não é. Só seria verdade se fosse adotada as normas da contabilidade privada. Na contabilidade pública, investimento é equivocadamente considerado déficit.
 
Como diz o velho ditado, ‘jabuti não sobe em árvore, se ele está lá foi colocado por alguém’. Se a Eletrobrás constrói uma hidroelétrica, ela é contabilizada como gasto corrente, se a privada AES faz a mesma hidroelétrica é contabilizado como investimento. Por que a essa estranha diferença? Há quem desconfia que isso foi uma forma de justificar à força a privatização nos anos 90 e as PPP nesta década.
 
Sob uma perspectiva racional, os investimentos em infra-estrutura, como manutenção de pista de aeroportos, são freqüentemente inadiáveis. Por definição, investimentos inadiáveis sempre geram retornos econômicos e sociais muito superiores a seus custos. Portanto, são urgentes e viáveis. No final dos anos 90, havia um desejo muito grande de privatizar tudo que fosse possível. Todavia, havia uma grande resistência da sociedade contra as privatizações. A solução encontrada para quebrar essa resistência foi dizer que o governo não teria recursos suficientes para realizar os investimentos em infra-estrutura. Inventou-se que o Estado brasileiro estava “falido”. Isso nunca foi verdade. De fato, jamais houve argumentos razoáveis para provar que o Estado estava “falido”. A relação dívida/PIB sempre esteve dentro de patamares razoáveis. Assim, no início da década, os defensores das privatizações irrestritas ficaram presos a argumentos preconceituosos, como acusar o Estado e seus órgãos de elefante branco, etc.
 
A partir de 1995, surgiu a oportunidade de levantar um argumento relativamente defensável. As taxas de juros inéditas impostas pelo Banco Central na gestão Gustavo Franco faziam com que a dívida pública em relação ao PIB se elevasse também a taxas inéditas. Encontraram aí o que queriam. Passaram a defender que os gastos e investimentos essenciais ou de cunho social do Estado deveriam ser reduzidos para compensar o aumento (“inevitável”) dos gastos com juros.
Investimentos essenciais em infra-estrutura que geram retorno para o governo em impostos e lucros não aumentam de fato o endividamento líquido, pois são ativos. Porém, foram colocados no mesmo bolo dos gastos correntes, para que pudessem dizer que o Estado não teria capacidade para realizá-los. Eles supostamente aumentariam ainda mais a dívida pública líquida.
 
Entretanto, esse ainda era um argumento insuficiente para contingenciar muitos investimentos públicos, porque não havia um limite rígido para justificar que o governo não poderia realizar cada um dos investimentos essenciais que batiam-lhe à porta.
Em 1998 acharam a grande fórmula “mágica”: ‘a meta de superávit primário’. E ainda colocaram sobre o FMI a completa responsabilidade por sua imposição. A partir desse ponto poderiam barrar qualquer investimento, por mais fundamental ou rentável que ele seja, pois todos os investimentos e gastos deveriam passar pela portinha estreita do superávit primário. Incluir mais um investimento, por mais urgente, rentável ou barato que fosse seria considerado um “atentado” à meta e, portanto, à própria “estabilidade”. Pronto. Estava aberto o caminho para o apagão energético, a deterioração das estradas e da infra-estrutura em geral. Inclusive aeroportuária.
 
A irracionalidade da meta de superávit tornou-se evidente com o apagão. O governo FHC, para economizar poucos bilhões na construção de algumas hidroelétricas, desperdiçou dezenas ou centenas de bilhões de reais em redução do PIB, em arrecadação de impostos e em gastos adicionais decorrentes do racionamento, no ano de 2001 e anos seguintes. Se os investimentos públicos fossem contabilizados e tratados como investimentos ou se não houvesse uma meta tão rígida de superávit primário, isso jamais aconteceria.
 
Na "nova" contabilidade pública simplesmente inexiste a figura do investimento público. Ela, combinada com a meta de superávit primário, restringe quantitativamente o investimento governamental a seus menores valores possíveis. Levam assim a economia a diversos colapsos de infra-estrutura (apagões) desde o governo FHC.
 
Propagandeia-se por todas as direções que a meta é o auge da racionalidade moderna ditada pelos padrões internacionais. Triplo engano. A norma é irracional, retrógrada e completamente estranha aos padrões internacionais. A meta de superávit primário é uma invenção do governo brasileiro no início do segundo mandato de FHC. Jamais foi cogitada ou mesmo imaginada em nenhum país desenvolvido. Além disso, é a barreira à modernização da infra-estrutura e, portanto, do próprio país.
 
Por causa dela e dos últimos 20 anos de contingenciamento de gastos, São Paulo só tem 2 aeroportos, Cumbica só tem 2 pistas, não há metrô para Cumbica, o trânsito é engarrafado, todos querem viajar por Congonhas, que está super congestionada, e depois de anos de má conservação, teve a pista reformada de forma apressada e foi liberada sem total segurança para dias de chuva, porque a infra-estrutura aeroportuária está trabalhando no limite de sua capacidade. Resumindo: Superávit primário é economicamente irracional e custa muitas vidas.
 
O próximo presidente, qualquer que seja, fará o país voltar aos padrões internacionais e não adotará meta de superávit primário, pois ela é já tida pela maioria da elite intelectual e política como claramente irracional e nefasta. O próximo presidente não trará compromissos que lhe exijam exibições pirotécnicas de crente neófito em ortodoxia econômica. Além disso, a sociedade brasileira não suporta mais nem o discurso e muito menos a prática ortodoxa de exaurir o investimento público. Os apagões da infra-estrutura estão se configurando como o maior mote da próxima campanha eleitoral.
 
O presidente Lula, porém, pode se adiantar, reduzindo ou acabando com a meta, ou ainda incluindo, de fato, um orçamento de capital na contabilidade pública, tornando-a mais racional. Essas são provavelmente boas soluções para garantir que o presidente seja lembrado como um grande governante. Atenção. Se nada for feito, outros apagões virão. E certamente abrir o capital da Infraero não é a solução, ainda que essa iniciativa possa ser positiva. Demoraria muito tempo, anos, para esse iniciativa resultar em investimentos. Mas esses são urgentes e não se restringem aos aeroportos. 
 
(*) Gustavo Santos é Doutor em Economia IE-UFRJ
 



por  Gustavo A. G. dos Santos    

 

A longa crise aérea que o país vive é conseqüência do contingenciamento de gastos em infra-estrutura aeroportuária na última década e meia, frente a uma demanda crescente por transporte aéreo. Nesse sentido, em alguma instância, o triste acidente ou ao menos o grau de gravidade do mesmo parecem ser resultado dessa profunda escassez de investimentos públicos. Essa falta de investimentos decorre de abusivas metas de redução de dispêndios governamentais, cristalizadas com a meta de superávit primário.

 

A deficiência de investimentos públicos em infra-estrutura é evidente. Há muito já deveriam ter deslocado as maiores aeronaves para Cumbica e construído a terceira e a quarta pista nesse aeroporto. Se já tivesse sido construído o trem expresso para Cumbica, essa opção seria ainda mais óbvia. A malha de metrô de São Paulo é ínfima para o porte da sua região metropolitana. O trânsito é péssimo. Assim, todos querem pousar o mais próximo possível do centro da cidade.

 

Poder-se-ia ainda já ter sido construído um trem bala entre Rio e São Paulo. Em poucas regiões do mundo tal investimento é tão viável, devido ao imenso potencial de passageiros por quilometro percorrido. Isso reduziria a sobrecarga sobre os aeroportos de toda região Sudeste do Brasil, em particular de Congonhas. Além de ser a opção ambientalmente e economicamente mais racional. Mas tudo isso depende de orçamento público.

 

Se o governo não queria fazer investimentos pesados, ao menos deveria ter feito uma manutenção permanente para garantir a qualidade e a segurança dos serviços aeroportuários. Assim não chegaríamos ao nível de deterioração da pista que levou à aparentemente apressada reforma atual. Como isso não foi feito, ao menos a pista auxiliar de Congonhas deveria ter sido previamente reformada sob os melhores padrões internacionais, para que pudesse ser utilizada em todos os dias de chuva, enquanto se esperava que fosse possível fazer os sistemas de anti-aquaplanagem na pista principal. Mas a crise aérea aumentava muito pressão das companhias e indiretamente da sociedade para que a pista fosse liberada logo. Se o governo tivesse investido mais no sistema de controle de vôos e na infra-estrutura aeroportuária, não haveria crise aérea.

 

Depois do acidente poucos discordariam que esses investimentos deveriam ter sido feitos. Entretanto, os “sábios” economistas da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) há anos se esforçam para apertar ao máximo o torniquete que sufoca os investimentos públicos. Todos esses investimentos são cogitados há muito tempo. Mas a meta de superávit primário era e continua sendo mais importante do que vidas humanas. Não estamos exagerando. É exatamente isso.

 

Todas as rodovias que ligam as principais capitais brasileiras já deveriam ter sido duplicadas há muito tempo. A redução de acidentes, onde o Brasil é campeão, seria imensa. Mas esses investimentos continuam fora de cogitação, apesar do fluxo de veículos já justificá-los segundo padrões internacionais, há décadas.

 

Quando novos investimentos em infra-estrutura chegam às mãos da STN, o que fazem é repetir o célebre mas falso dilema imposto pelo ex-ministro Pedro Malan sobre o congresso. Quando os parlamentares tentavam convencê-lo sobre a urgência e relevância de certos investimentos públicos, ele dizia algo como: “Vocês dizem que esse investimento é importante, então me mostrem onde devo cortar gastos para que possa fazer esse investimento?”. Esse é o falso dilema do superávit primário.

 

Por essa perspectiva, o investimento público não é visto como uma fonte de benefícios para sociedade. Ele é visto como um desperdício de recursos. É incrível, mas é verdade. Se os investimentos públicos fossem considerados como uma ação que gera retorno econômico ou social, a pergunta do ex-ministro seria: “esse investimento é capaz de gerar retorno maior do que seu custo?”

 

Essa é a pergunta feita pelos ministros da fazenda de outros países. É também a pergunta feita por qualquer investidor privado. Se um investimento público ou privado gera um retorno que cobre seus custos ele será sempre factível, pois, se o investidor não tem o dinheiro necessário, poderá sempre financiá-lo. É simples. Se um investimento paga os custos de seu financiamento, ele é viável.

 

Essa é uma verdade especialmente válida para o governo federal, pois ele tem um poder para se financiar infinitamente maior do que qualquer empresa do setor privado. E mais, um investimento público, mesmo se gera pouco lucro em si, gera invariavelmente muito retorno em impostos. Esses retornos em impostos complementam o retorno financeiro direto. Eles permitem certos investimentos públicos sejam autofinanciáveis quando possuem grandes retornos sociais e pequenos retornos financeiros. Por isso, o governo pode fazer tranqüilamente muitos investimentos que são fundamentais para a coletividade, mas que o setor privado não quer assumir. Em razão disso, o governo pode construir estradas importantes sem que seja prejudicada sua capacidade financeira. De fato, o setor privado jamais constrói estradas sem subsídios. Em linguagem de economista, diz-se que as estradas possuem externalidades socialmente positivas que o investidor privado não pode se apropriar lucrativamente. Mas a coletividade pode. Portanto, o poder público assume a obra.

 

Essa é a grande verdade encoberta pela meta de superávit primário e pelas  estranhas idiossincrasias da nova contabilidade pública. É difícil entender a racionalidade por detrás da estranha diferença entre a contabilidade pública e a contabilidade privada. Não há razão que explique porque um mesmo investimento rentável é contabilizado como investimento apenas porque o número de identidade da empresa (CNPJ) da empresa é privado e como gasto corrente se o CNPJ é público.

 

Superávit primário é quando a receita menos a despesa operacional é maior do que os investimentos. As grandes empresas privadas estão quase sempre em déficit primário, segundo os critérios da contabilidade pública. Mas isso nunca é visto como um problema. Pelo contrário, significa que elas estão investindo, tomando financiamento e crescendo. O mesmo deveria ser interpretado com relação ao governo. A contabilidade deveria ser a mesma. Se o governo está investindo muito em infra-estrutura, deveria ser considerado uma iniciativa positiva. Mas no Brasil hoje não é. Só seria verdade se fosse adotada as normas da contabilidade privada. Na contabilidade pública, investimento é equivocadamente considerado déficit.

 

Como diz o velho ditado, ‘jabuti não sobe em árvore, se ele está lá foi colocado por alguém’. Se a Eletrobrás constrói uma hidroelétrica, ela é contabilizada como gasto corrente, se a privada AES faz a mesma hidroelétrica é contabilizado como investimento. Por que a essa estranha diferença? Há quem desconfia que isso foi uma forma de justificar à força a privatização nos anos 90 e as PPP nesta década.

 

Sob uma perspectiva racional, os investimentos em infra-estrutura, como manutenção de pista de aeroportos, são freqüentemente inadiáveis. Por definição, investimentos inadiáveis sempre geram retornos econômicos e sociais muito superiores a seus custos. Portanto, são urgentes e viáveis. No final dos anos 90, havia um desejo muito grande de privatizar tudo que fosse possível. Todavia, havia uma grande resistência da sociedade contra as privatizações. A solução encontrada para quebrar essa resistência foi dizer que o governo não teria recursos suficientes para realizar os investimentos em infra-estrutura. Inventou-se que o Estado brasileiro estava “falido”. Isso nunca foi verdade. De fato, jamais houve argumentos razoáveis para provar que o Estado estava “falido”. A relação dívida/PIB sempre esteve dentro de patamares razoáveis. Assim, no início da década, os defensores das privatizações irrestritas ficaram presos a argumentos preconceituosos, como acusar o Estado e seus órgãos de elefante branco, etc.

 

A partir de 1995, surgiu a oportunidade de levantar um argumento relativamente defensável. As taxas de juros inéditas impostas pelo Banco Central na gestão Gustavo Franco faziam com que a dívida pública em relação ao PIB se elevasse também a taxas inéditas. Encontraram aí o que queriam. Passaram a defender que os gastos e investimentos essenciais ou de cunho social do Estado deveriam ser reduzidos para compensar o aumento (“inevitável”) dos gastos com juros.

Investimentos essenciais em infra-estrutura que geram retorno para o governo em impostos e lucros não aumentam de fato o endividamento líquido, pois são ativos. Porém, foram colocados no mesmo bolo dos gastos correntes, para que pudessem dizer que o Estado não teria capacidade para realizá-los. Eles supostamente aumentariam ainda mais a dívida pública líquida.

 

Entretanto, esse ainda era um argumento insuficiente para contingenciar muitos investimentos públicos, porque não havia um limite rígido para justificar que o governo não poderia realizar cada um dos investimentos essenciais que batiam-lhe à porta.

Em 1998 acharam a grande fórmula “mágica”: ‘a meta de superávit primário’. E ainda colocaram sobre o FMI a completa responsabilidade por sua imposição. A partir desse ponto poderiam barrar qualquer investimento, por mais fundamental ou rentável que ele seja, pois todos os investimentos e gastos deveriam passar pela portinha estreita do superávit primário. Incluir mais um investimento, por mais urgente, rentável ou barato que fosse seria considerado um “atentado” à meta e, portanto, à própria “estabilidade”. Pronto. Estava aberto o caminho para o apagão energético, a deterioração das estradas e da infra-estrutura em geral. Inclusive aeroportuária.

 

A irracionalidade da meta de superávit tornou-se evidente com o apagão. O governo FHC, para economizar poucos bilhões na construção de algumas hidroelétricas, desperdiçou dezenas ou centenas de bilhões de reais em redução do PIB, em arrecadação de impostos e em gastos adicionais decorrentes do racionamento, no ano de 2001 e anos seguintes. Se os investimentos públicos fossem contabilizados e tratados como investimentos ou se não houvesse uma meta tão rígida de superávit primário, isso jamais aconteceria.

 

Na “nova” contabilidade pública simplesmente inexiste a figura do investimento público. Ela, combinada com a meta de superávit primário, restringe quantitativamente o investimento governamental a seus menores valores possíveis. Levam assim a economia a diversos colapsos de infra-estrutura (apagões) desde o governo FHC.

 

Propagandeia-se por todas as direções que a meta é o auge da racionalidade moderna ditada pelos padrões internacionais. Triplo engano. A norma é irracional, retrógrada e completamente estranha aos padrões internacionais. A meta de superávit primário é uma invenção do governo brasileiro no início do segundo mandato de FHC. Jamais foi cogitada ou mesmo imaginada em nenhum país desenvolvido. Além disso, é a barreira à modernização da infra-estrutura e, portanto, do próprio país.

 

Por causa dela e dos últimos 20 anos de contingenciamento de gastos, São Paulo só tem 2 aeroportos, Cumbica só tem 2 pistas, não há metrô para Cumbica, o trânsito é engarrafado, todos querem viajar por Congonhas, que está super congestionada, e depois de anos de má conservação, teve a pista reformada de forma apressada e foi liberada sem total segurança para dias de chuva, porque a infra-estrutura aeroportuária está trabalhando no limite de sua capacidade. Resumindo: Superávit primário é economicamente irracional e custa muitas vidas.

 

O próximo presidente, qualquer que seja, fará o país voltar aos padrões internacionais e não adotará meta de superávit primário, pois ela é já tida pela maioria da elite intelectual e política como claramente irracional e nefasta. O próximo presidente não trará compromissos que lhe exijam exibições pirotécnicas de crente neófito em ortodoxia econômica. Além disso, a sociedade brasileira não suporta mais nem o discurso e muito menos a prática ortodoxa de exaurir o investimento público. Os apagões da infra-estrutura estão se configurando como o maior mote da próxima campanha eleitoral.

 

O presidente Lula, porém, pode se adiantar, reduzindo ou acabando com a meta, ou ainda incluindo, de fato, um orçamento de capital na contabilidade pública, tornando-a mais racional. Essas são provavelmente boas soluções para garantir que o presidente seja lembrado como um grande governante. Atenção. Se nada for feito, outros apagões virão. E certamente abrir o capital da Infraero não é a solução, ainda que essa iniciativa possa ser positiva. Demoraria muito tempo, anos, para esse iniciativa resultar em investimentos. Mas esses são urgentes e não se restringem aos aeroportos. 


 

(*) Gustavo Santos é Doutor em Economia IE-UFRJ